Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

2 de outubro de 2008

A Nossa Razão de Ser

(1978 - artigo de apresentação de O Progresso da Foz)

A Nossa Razão de Ser

Homo Sapiens, designação científica desta espécie animal a que pertencemos e que por força de variadíssimas circunstâncias se tornou no mais forte e inteligente dentre os seus pares no reino a que pertence. Sua diferenciação não reside no seu modo de sustento ou sequer de procriação, basicamente iguais, nem tão pouco na capacidade de raciocínio (muito embora até há bem pouco o apelidássemos de único ser racional), pois outros animais a possuem em grau elevado.
A determinante da nossa invulgaridade no seio dos seres vivos está na nossa aptidão para generalizar ideias, para a sua elaboração e transmissão de geração em geração, em resumo, para a produção de cultura, no moderno sentido de globalidade do conhecimento humano.
Atendendo então a que o homem não é exactamente a mesma coisa que um dromedário ou um jerico, porque outros valores o preocupam que não apenas o consolo da barriga ou o deixar descendência, temos de concluir então que muito mal temos ido no nosso papel de representantes da espécie no mundo.
O homem viverá eternamente preso às grilhetas do oportunismo e da mentira se permanecer ignorante, manietado pela obcecante ideia de um nível de vida mais elevado, pelo qual suspira ardentemente e que deseja mesmo que este lhe venha por vias obscuras e ardilosas. Países há em que uma situação económica desafogada não impediu uma baixa condição moral da população, pois não se acautelaram os valores culturais existentes, substituídos que foram pelo comodismo e individualismo da «civilização atómica» e pela proliferação dos «meios de fuga» ao banal do quotidiano, através do álcool, da droga ou mesmo do suicídio.
Nós queremos ardentemente e pugnamos com todas as forças por uma situação económica globalmente estável para todos os portugueses, em que o desafogo origine passos em frente na procura da nossa identidade cultural nacional e universal. Só não queremos que a crise económica seja resolvida em prejuízo da nossa condição de homens e de portugueses, como até nem acreditamos que ela seja resolúvel sem a compreensão generalizada, massiva, das suas implicações no nosso sentir e pensar.
Na pretensão de solucionar a já quase mítica «crise» fomenta-se a solução individual do «salve-se quem puder», do amealhamento sovina e da riqueza rápida e fácil. A honra e a dignidade têm sido assustadoramente substituídas pela corrupção, a pedinchice e a indolência. Ganha importância a mentalidade egoísta e auto-suficiente das camadas «remediadas», ao mesmo tempo que a esmagadora maioria da população é desterrada (e se auto-desterra) para a passividade e a conformação.
A acompanhar toda esta situação enaltece-se, mais, idolatra-se, a identidade designada por povo, com fins que visam mais criar trampolins do que compreender a sua real importância na vida como na história. Mitificou-se o nome, aureolou-se de intocável e assim nasceu o consenso que «povo» é sempre quem está do nosso lado e que do outro são apenas «minorias» e «enganados». A lógica desta maneira de pensar é que sendo o povo, nas suas palavras, omnisciente e infalível, nunca poderia estar em oposição à nossa prática e à nossa ideologia, pois esta é sempre a melhor, a mais justa, visto a ela termos aderido.
E com este sofisma se abstractizou o real de povo, impedindo os mais clarividentes, os elementos que pertencendo-lhe se destacaram e destacam no seu pensamento e acção, de exercer nele (povo) o seu papel orientador e formativo. Criticar as massas populares está fora dos propósitos dos que a adulam para lhe trepar sobre o costado, mas para aqueles que o prezam, que compreendem o seu carácter de repositório de saber e de força, para esses, criticar, apontar os defeitos ao colectivo, é uma obrigação, um dever de quem se sente seguro do seu papel participativo e democrático, uma prova cabal de espírito avançado.
A inconstância, a maleabilidade, historicamente ligada a um sebastianismo messiânico, a procura sistemática de «salvadores» a quem se atribui qualidades que existem apenas no plural dos homens, etc., tudo isto são defeitos graves e perigosos que em maior ou menor escala existem no seio deste povo que amamos.
E amamos porque lhe pertencemos. E pertencemo-lhe porque em nenhuma situação temporal negamos intrínseca solidariedade com o seu sofrer e a nossa circunstância social, histórica, geográfica, etc., de lusitanidade.
Estamos cônscios que ultrapassaremos mais esta edição de 1383, do Cabo das Tormentas, de 1640, de 1820, de 1910, de 1974 e tantas outras situações em que fomos postos à prova. Um movimento social e cultural, patriótico, democrático e actuante, ganha peito e se agiganta, ultrapassando a demagogia com o realismo e a clarividência, salvaguardando tradições e patrimónios contra a importação de costumes e valores estrangeiros, praticando a liberdade e formando consciências contra a indolência ou o «agitacionismo» gratuito a que se não descortina o objectivo.
Viver sim, elevar o nível de vida também sim, mas que nada se faça de mãos dadas com a falsidade e na negação da nossa história.
Há quem venda a dignidade, quem renegue ideais e quem abandone a pátria em perigo mesmo sem sair dela. Nós não! Aprendemos indelevelmente com mestre Afonso Domingues: — o que construímos poderá vir a cair, mas por debaixo dos escombros ficarão nossos corpos.
(publicado n'O Progresso da Foz)

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