Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

2 de outubro de 2008

CARTA DE BUCARESTE

Outubro/1995

«Beija a mão que não te atreves a morder»

Depois de muito e bom comer, numa mesa repleta de novidades, para mim, e de «velhas amizades», tais como queijo de Sibiu, beringelas em creme, pimentos vermelhos avinagrados, linguiças e salsichas, e tudo o mais que esqueci, acompanhado por um licor de ginjas semelhante ao nosso, serviram-me o café, previamente adoçado, fruto mais que provável de racionamentos antigos e de preços «actuais». Estava terminada a refeição que começara às 14,30 horas.
Ensinaram-me então mais sobre a Roménia actual e o passado próximo. O simulacro do julgamento de Ceausescu não ganhou nem aprovação nem repulsa. Quem o assassinou era, e é, responsável por uma ditadura de quase 30 anos, em que «se beijava a mão que não se atrevia a morder» (Edward Behr).
Não houve mudança porque... nada mudou! Enfim, não será tanto assim já que, se não de forma completa, hoje se pode dizer e escrever o que se pensa, e ainda sair o país. O impressionante movimento popular — temos presente as imagens televisivas de Dezembro de 1989 — sobretudo dos estudantes, se não foi suficientemente forte para derrubar o sistema e os seus agentes de imediato, obrigou a que um e outros, até por sobrevivência, introduzissem no quotidiano do país as citadas alterações. Hoje, cremos ser irreversível a democratização da Roménia e a emancipação das suas gentes.
Mas, que é isto? Então depois de um café, tomado há já meia hora, vamos comer ainda mais? Pois íamos, e não era pouco. Antes tinha sido uma «entrada»; agora, juntando-se aos entretanto reforçados pratos que serviram de abertura, aparecia um pato, parecido com guisado, que estava delicioso. A Victoria, que tudo preparou, inclusive a ginjinha, tinha tanto de calada como de boa cozinheira.
Contei-lhe do Hotel. Era normal! A presença da «vida fácil» em certos hotéis era consentida e mesmo fomentada. Recordo as ofertas do porteiro, num italiano pior que o meu, à porta do quarto, num dia em que indo mais carregado me ajudou: «São jovens, belas e baratas!» Confirmei as duas primeiras afirmações ao longo dos dias quando, parado à espera do ascensor, as via a três metros, num grande sofá, todas sorriso e oferta.
A refeição continuava e sucediam-se os vinhos, todos romenos, mas de castas e nomes maioritariamente de influência francesa: Cabernet Sauvignon, Piesling, Jedval.
Eram já 5,30 horas da tarde. Adriana e Catalin Vasilescu, romenos vindos há pouco do Canadá, tinham-se entretanto juntado a nós. Falámos das filhas de Viki (Victoria) e de Florea: bonitas, simpáticas e — impressionaram-me! — seguras de si. Ambas artistas, Andrea, a mais velha, já afirmada quer no desenho de moda quer na pintura; os seus auto-retratos são plenos de técnica e de perspectiva. Mesmo o seu namorado, Eugen, sempre calado, um artista do vidro e da joalharia. Anamaria, a mais nova, com 15 anos e de personalidade forte, leu-me um poema em francês e ofereceu-me uma pintura. Não é insensivelmente que se é bem recebido a tantos quilómetros de casa por gente diferente de nós mas de sentimento tão próximos.
Recordei a dificuldade que tive em encontrar um restaurante «normal» para uma refeição do dia-a-dia. Não há oferta intermédia: ou espeluncas ou restaurantes a preços do centro da Europa. No próprio hotel onde estava — aparentemente um «três estrelas» — a televisão era velha e mal funcionava, a banheira e o lavatório não tinham vedante de água e a única refeição que lá comi foi horrorosa, um frango queimado e umas batatas fritas ensopadas em óleo rançoso. Valeu a cerveja, uma Silva — vejam bem! — de 12º.
Na mesa falava-se de Arte, sobretudo da possante escultura romena. Tinha conhecido, em Bruxelas, através da sua viúva, Bogdana, e da minha amiga Monique Deryckere, a obra desse «monstro» chamado George Apostu. Napoleon Tiron, Enea, Vasili Gorduz honraram-me com o franquear dos seus ateliers e a «chave» foi Florea. Com eles revivi a outro nível a impressionante beleza e força das esculturas populares do Museu da Aldeia: um imenso parque para onde se transferiram dezenas de casas rurais de diferentes zonas do país, todas tradicionalmente de madeira esculpida.
Mas esse Museu era anterior a Ceaucescu. Este derrubou quarteirões inteiros de casas do século XVIII e XIX para construir o seu palácio, sadicamente chamado «do povo». Fui ver o palácio. Senti-me, ao perto, em frente à empena de uma barragem. Terrificante. E pensar que no seu interior se disfarçam túneis de fuga que desaguam no metro ou noutras casas, e que possui abrigos anti-atómicos... e banheiras e lavatórios revestidos a ouro.
Na mesa, Florea não escondia a repulsa artística e ética ao «conducator». Entretanto, voltava o café e a ginja, com doces de permeio. Eram 18,30 horas. Confiei-lhes que afinal não achava Bucareste a triste, cinzenta e inatractiva cidade que em Bruxelas me pintaram. Falei-lhes do Porto e dos lugares-comuns de que é vítima.

Parti com projectos a fervilhar. É normal, dirão alguns! Pois não se admirem então, um dia destes. De receber um convite para ver as pinturas da família Niculae, ou parte dela, num edifício bonito situado entre o rio e o mar, com palmeiras por perto e, por fundo, a música das ondas de encontro ao cais.

Agosto de 1995

O QUARTO DOS MEUS SONHOS

(tradução do francês do poema de Niculae Anamaria)

O quarto dos meus sonhos; um quarto fantástico onde um fino perfume impressionista me enreda numa história azul.
Nesse quarto, de paredes sonolentas e de mobiliário cor de indignação, sobre uma mesa, vejo um caderno cheio de poesia, cheio de secas flores azuis.
O quarto dos meus sonhos é um local santo, aonde os meus pensamentos se apaziguam.

(Bucareste, 25 de Agosto de 1995)

(publicado n'O Progresso da Foz, n.º8)

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