(texto para a exposição no Consulado de Portugal, em Sevilha, e no edifício Madou, da Comissão Europeia, em Bruxelas, ambas entre Novembro e Dezembro de 2007)
Será porventura um lugar comum, nos nossos dias, dizer que um artista plástico não se insere numa determinada corrente ou escola. Será, mas não é pelo facto de a repisar até à exaustação que uma verdade, ou mentira!, o deixa de ser, reconhecendo embora o valor persuasivo da repetição, nem muito menos que a sua utilização operativa seja desnecessária.
A mesma asserção aplica-se ao conceito de vanguarda, a mor das vezes transmudado, desnaturado, exactamente em categoria de escola e corrente, outorgando aos seus membros uma qualidade, um privilégio inatacável e restritivo.
Por outro lado, hoje em arte não há um tempo internacional, menos ainda unânime que reconhecido, excepto se o considerarmos como aberto, lato abrangente, portanto, permissivo, logo inoperacional do ponto de vista crítico[1].
É fincado nestas alegações que pretendo arrumar, em sumário, o percurso de Maria Leal da Costa e, no concreto, esta viragem sensível e sentida com as obras desta exposição preparada para Sevilha e Bruxelas.
Desafiando-se e desafiada por um mote histórico-cultural – as relações com o Estado vizinho nas suas constituintes e contradições – a escultora ancorou-se num dicionário de formas largo, significante, simultaneamente patente e enigmático, capaz de presentificar essas realidades da geografia, das histórias, das culturas, das sociedades que, aquém-Pirinéus, conjunta e separadamente vivem e sobrevivem. Não esqueçamos aqui a mutabilidade, a capacidade de reescrita próprias à História, por oposição à perenização (relativa) da obra de Arte. Não esqueçamos ainda que, em liberdade, o direito centrípeto a uma confluência, é companheiro igualitário – deve ser – do direito centrífugo à dispersão, e esta proposição é pertinente nos aspectos multifacetados das sociedades.
Os assomos de mudança de rumo criativo que as esculturas Jogo de Memórias, na Câmara de Portalegre e, sobretudo, Gilreu, em Bruxelas e O Poder do Silêncio, em Vilnius, tanto denunciavam, assume-se aqui e agora como caminho seguro e não como simples experiências avulsas. Se hace camiño al andar prova-o assim Maria Leal da Costa numa pragmática de continuidade/ruptura de sentido ascendente, distinta, isso sim, dum por aí generalizado e aparente “triunfo” precoce, obviamente em declive a posteriori que, só pode ser, vazante.
Enquadrando a sua obra numa tríade possível de abordagem do processo criativo: Tema, Substância, Acaso, estas obras evidenciam uma simplicidade plástica formal - apartada dos minimalismos redutores e dessa forma pura, tão do agrado da sociedade pósmoderna - acompanhada por um esquematismo criativo de linhas claras mas, insisto!, de significações abertas e motivadoras.
De fora das grandes elaborações[2] teóricas, que amiúde escravizam o labor feito, não se julgue por isso, que o cinzel e o torno da escultora se passeiam diletantes sobre os materiais, num desnorte dirigido pelo acaso[3]. Não! Há uma sabedoria de aplicação regrada entre este e a substância pretendida, isto é, entre um ponto de partida, ainda que indeciso e vago, e um ponto de chegada, um ensaiar, um proceder através de propostas e esboços, interrogações pacientes da matéria[4].
A matéria é assim uma espécie de obstáculo sobre o qual se exerce a actividade inventiva[5]
A obra de Maria Leal da Costa é uma ondulação pacífica, mais de pulsão que de razão, não eliminando esta, antes a submetendo, numa rebelião de silêncio, sem estapafúrdios e excentridades, absolutamente independente e consciente de que a procura da identificação não tem nenhum interesse; pelo contrário, o interesse reside na diferença, posto que a criação justamente deriva dela[6].
Há ainda uma busca da essencialidade, pela bipolaridade das peças que são levadas a um singelismo atractivo e peculiar, em brevidade de impulsos e palavras talhadas ou cortadas, numa capacidade de simplificar os meios para eliminar o desnecessário para que o necessário possa falar[7].
Nas conjugações felizes de mármores e ferros, nas alianças, certas ou aparentes, nos anéis encaixados ou sobrepostos, nas ramificações e penetrações de tubos, nos enroscados, não se ditam, não se decretam caminhos artísticos, vias únicas para a salvação das Artes, e muito menos da História. Antes há uma proposta de Graça, de encanto e sedução, capaz de levar mais fundo e enriquecer o passante, numa necessária e salutar desbanalização da vida[8].
Decorrentemente talento e produção se cruzam nestas obras, abstraídas duma obsessão de originalidade – preterida, como dissemos, à essencialidade – e na negativa da arte-espectáculo, numa contemporaneidade vivida sem temores ao cotejo e sem intenções de doutrinação.
Não há mais Salões de Nadar onde os visitantes se horrorizam com as pinturas expostas ou críticos a chamar mordazmente fauves aos artistas petulantes. Podem colar excrementos às telas, defecar em perfomances bcbg[9] ou ainda automutilarem-se em directo; nada, mas nada, hoje em dia, pasma um público e uma crítica revestidos de carapaças resistentes a toda a insolência, por força da sua banalização e iteração. Os complexos, em Arte, podem não ser, e não o são na maior parte dos casos, de inferioridade, mas são seguramente sentimentos inferiores.
A produção de Maria Leal da Costa insere-se então numa muito abrangente movimentação para um certo retorno da arte a um espaço de negociação[10], onde o trabalho, como a liberdade, não são desfechos mas antes trajectória, e onde se reassume a transcendência do objecto criado, que não é apenas o que ali está, mas também a sua capacidade de gerar individuais interpretações: nem definitivas, nem exclusivas, nem provisórias, nem aproximativas[11].
E se ao crítico compete, de uma certa maneira eliminando a noção de belo, desvirginar, racionalizar[12] a leitura da obra, considerando-a sempre como produto inacabado[13], para o artista, em processo de elaboração, a independência, a indiferença, em relação àquele e ao público, deve ser total.
Maria Leal da Costa, na fabricação de escultura, não se debate perdulariamente entre o verdadeiro e o falso, o retrocesso ou a evolução, problemas enfim exteriores à substância da Arte; contrapõe, em pedra e ferro, um empenhamento resoluto numa intenção, temperada por um preclaro talento.
A mesma asserção aplica-se ao conceito de vanguarda, a mor das vezes transmudado, desnaturado, exactamente em categoria de escola e corrente, outorgando aos seus membros uma qualidade, um privilégio inatacável e restritivo.
Por outro lado, hoje em arte não há um tempo internacional, menos ainda unânime que reconhecido, excepto se o considerarmos como aberto, lato abrangente, portanto, permissivo, logo inoperacional do ponto de vista crítico[1].
É fincado nestas alegações que pretendo arrumar, em sumário, o percurso de Maria Leal da Costa e, no concreto, esta viragem sensível e sentida com as obras desta exposição preparada para Sevilha e Bruxelas.
Desafiando-se e desafiada por um mote histórico-cultural – as relações com o Estado vizinho nas suas constituintes e contradições – a escultora ancorou-se num dicionário de formas largo, significante, simultaneamente patente e enigmático, capaz de presentificar essas realidades da geografia, das histórias, das culturas, das sociedades que, aquém-Pirinéus, conjunta e separadamente vivem e sobrevivem. Não esqueçamos aqui a mutabilidade, a capacidade de reescrita próprias à História, por oposição à perenização (relativa) da obra de Arte. Não esqueçamos ainda que, em liberdade, o direito centrípeto a uma confluência, é companheiro igualitário – deve ser – do direito centrífugo à dispersão, e esta proposição é pertinente nos aspectos multifacetados das sociedades.
Os assomos de mudança de rumo criativo que as esculturas Jogo de Memórias, na Câmara de Portalegre e, sobretudo, Gilreu, em Bruxelas e O Poder do Silêncio, em Vilnius, tanto denunciavam, assume-se aqui e agora como caminho seguro e não como simples experiências avulsas. Se hace camiño al andar prova-o assim Maria Leal da Costa numa pragmática de continuidade/ruptura de sentido ascendente, distinta, isso sim, dum por aí generalizado e aparente “triunfo” precoce, obviamente em declive a posteriori que, só pode ser, vazante.
Enquadrando a sua obra numa tríade possível de abordagem do processo criativo: Tema, Substância, Acaso, estas obras evidenciam uma simplicidade plástica formal - apartada dos minimalismos redutores e dessa forma pura, tão do agrado da sociedade pósmoderna - acompanhada por um esquematismo criativo de linhas claras mas, insisto!, de significações abertas e motivadoras.
De fora das grandes elaborações[2] teóricas, que amiúde escravizam o labor feito, não se julgue por isso, que o cinzel e o torno da escultora se passeiam diletantes sobre os materiais, num desnorte dirigido pelo acaso[3]. Não! Há uma sabedoria de aplicação regrada entre este e a substância pretendida, isto é, entre um ponto de partida, ainda que indeciso e vago, e um ponto de chegada, um ensaiar, um proceder através de propostas e esboços, interrogações pacientes da matéria[4].
A matéria é assim uma espécie de obstáculo sobre o qual se exerce a actividade inventiva[5]
A obra de Maria Leal da Costa é uma ondulação pacífica, mais de pulsão que de razão, não eliminando esta, antes a submetendo, numa rebelião de silêncio, sem estapafúrdios e excentridades, absolutamente independente e consciente de que a procura da identificação não tem nenhum interesse; pelo contrário, o interesse reside na diferença, posto que a criação justamente deriva dela[6].
Há ainda uma busca da essencialidade, pela bipolaridade das peças que são levadas a um singelismo atractivo e peculiar, em brevidade de impulsos e palavras talhadas ou cortadas, numa capacidade de simplificar os meios para eliminar o desnecessário para que o necessário possa falar[7].
Nas conjugações felizes de mármores e ferros, nas alianças, certas ou aparentes, nos anéis encaixados ou sobrepostos, nas ramificações e penetrações de tubos, nos enroscados, não se ditam, não se decretam caminhos artísticos, vias únicas para a salvação das Artes, e muito menos da História. Antes há uma proposta de Graça, de encanto e sedução, capaz de levar mais fundo e enriquecer o passante, numa necessária e salutar desbanalização da vida[8].
Decorrentemente talento e produção se cruzam nestas obras, abstraídas duma obsessão de originalidade – preterida, como dissemos, à essencialidade – e na negativa da arte-espectáculo, numa contemporaneidade vivida sem temores ao cotejo e sem intenções de doutrinação.
Não há mais Salões de Nadar onde os visitantes se horrorizam com as pinturas expostas ou críticos a chamar mordazmente fauves aos artistas petulantes. Podem colar excrementos às telas, defecar em perfomances bcbg[9] ou ainda automutilarem-se em directo; nada, mas nada, hoje em dia, pasma um público e uma crítica revestidos de carapaças resistentes a toda a insolência, por força da sua banalização e iteração. Os complexos, em Arte, podem não ser, e não o são na maior parte dos casos, de inferioridade, mas são seguramente sentimentos inferiores.
A produção de Maria Leal da Costa insere-se então numa muito abrangente movimentação para um certo retorno da arte a um espaço de negociação[10], onde o trabalho, como a liberdade, não são desfechos mas antes trajectória, e onde se reassume a transcendência do objecto criado, que não é apenas o que ali está, mas também a sua capacidade de gerar individuais interpretações: nem definitivas, nem exclusivas, nem provisórias, nem aproximativas[11].
E se ao crítico compete, de uma certa maneira eliminando a noção de belo, desvirginar, racionalizar[12] a leitura da obra, considerando-a sempre como produto inacabado[13], para o artista, em processo de elaboração, a independência, a indiferença, em relação àquele e ao público, deve ser total.
Maria Leal da Costa, na fabricação de escultura, não se debate perdulariamente entre o verdadeiro e o falso, o retrocesso ou a evolução, problemas enfim exteriores à substância da Arte; contrapõe, em pedra e ferro, um empenhamento resoluto numa intenção, temperada por um preclaro talento.
Eu sou bela, ó mortais, como um sonho de pedra[14].
Joaquim Pinto da Silva
Tervuren, 28 de Outubro de 2007
Notas:
[1] Longe vai o tempo, o último neste sentido, em que Miguel Wandshcneider, em Circa 1968, Museu de Serralves, dizia, “em Portugal não faltam artistas sintonizados com os paradigmas emergentes, o que falta é uma assimilação e dominância desse mesmo paradigma”. Exactamente o que desapareceu, pulverizando-se sem remédio, foi esse mesmo conceito de paradigma único, mandante.
[2] E de “elaboradas explicações largamente denecessárias”, como acentuou explicitamente a Documenta 12, em Kassel, que Maria Leal da Costa, atenta e conhecedora, visitou, assim como visitou a Skulptur Project, em Münster.
[3] Longe também vai o Action Painting, esgotada que foi a sua efémera, ainda que valiosa, lição.
[4] Pareyson.
[5] Umberto Eco.
[6] Gao Xingjian.
[7] Hans Hoffman.
[8] Leonardo Coimbra.
[3] Longe também vai o Action Painting, esgotada que foi a sua efémera, ainda que valiosa, lição.
[4] Pareyson.
[5] Umberto Eco.
[6] Gao Xingjian.
[7] Hans Hoffman.
[8] Leonardo Coimbra.
[9] Bon chic, bon genre.
[10] Documenta 12.
[11] Umberto Eco.
[12] Gao Xingjian.
[13] Michel Butor.
[14] Baudelaire.
[10] Documenta 12.
[11] Umberto Eco.
[12] Gao Xingjian.
[13] Michel Butor.
[14] Baudelaire.
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