Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

6 de março de 2006

Uma escrita mar do Peixe

(Prefácio ao livro História do Batel Vae com Deus de Raul Brandão, Março de 2006)
Uma escrita mar do peixe

Ao José Carvalho Nunes,
Homem bom da Cantareira, meu sangue.
(in memoriam).
Marcar o tempo

A 1 de Fevereiro de 1899 nasce, em Lisboa a revista Brasil-Portugal, “um mês depois de nascer o ano e pouco antes de expirar o século… com a ideia de… tornar o Brasil conhecido em Portugal, tornar Portugal conhecido no Brasil, generalizando em cada um destes países a arte e a literatura do outro, e tornando apreciados de ambos, os escritores e os artistas, que na mesma língua, rica, sonora e rítmica, dizem o que na pátria portuguesa e na pátria brasileira tem o sentimento mais intenso e delicado e a ideia de mais profundo e brilhante… (apertando) as relações de comércio e indústria entre as duas nações irmanadas pelo sangue, pelo sentimento e pela tradição”[1]. Assinam esta apresentação Augusto de Castilho, Jayme Victor e Lorjó Tavares.
Nesse mesmo número anuncia-se a entrega da direcção artística da revista, a partir do nº 2, a Celso Hermínio (1871/1904, republicano, desenhador e caricaturista, recém-retornado do Brasil) e a Raul Brandão, “o fino artista e esmerado prosador, que actualmente reside no Porto, … o encargo de correspondente literário (da revista) naquela cidade… o mais laborioso centro do norte… a capital do trabalho, a cidade que tem mais relações comerciais com o Brasil”[2].
Dessa correspondência literária irão sair, entre outras, as páginas da História do Batel Vae com Deus e sua Companha, o assunto que nos move, e cuja primeira edição, ora em livro autónomo, consideramos assinalável.
Esta importância advém do facto de não termos encontrado até hoje qualquer apreciação ou pelo menos referência alguma à existência dessa História, enquanto uma unidade pretendida pelo autor, em nenhum dos estudiosos ou admiradores da sua obra que, como sabemos, são vários em meio erudito. O facto de a publicação da obra ser esparsa pelos números da revista, porventura terá restringido a sua compreensão e análise enquanto um todo.
Necessário se torna, no entanto, referir a edição desses contos, emparceirando com outros textos de diversos autores, em antologia com o título Sarça Erótica - Obra imaginada e artisticamente dirigida por Petrus, para servir a Literatura Portuguesa[3].
A existência destes contos está também referenciada em duas publicações a propósito de exposições comemorativas sobre Raul Brandão e a sua obra: a primeira, por ocasião do centenário do seu nascimento, realizada em Março de 1967, pela Biblioteca Municipal do Porto, cujo catálogo só foi publicado em 1974[4]; a segunda, no cinquentenário da sua morte, realizada pela Biblioteca Nacional, em Lisboa, em 1980[5].
Pela Biblioteca do Porto ficamos a saber correctamente os números da revista em que os contos foram produzidos [6] e ainda a existência da citada edição de Petrus[7].
Pelo da Biblioteca Nacional de Lisboa, temos a situação paginada dos mesmos [8], mas faltando-lhe a referência ao último conto, As Mulheres.
Salientada assim a originalidade e mérito desta edição da Edium Editores, do Jorge Castelo Branco, e do “descobridor”, esse músico, artista, fotógrafo, ensaísta, etc., que é o António Cunha e Silva, terminemos esta consolidação do texto no tempo, com a referência prática aos números e datas da revista Brasil-Portugal que contêm os 10 contos que constituem a História do Batel Vae com Deus e sua Companha, não sem antes dizer que o escritor, se é verdade que nomeado correspondente na revista no Porto, desde o seu nº 1, conforme atrás indicado, está dado como vivendo em Lisboa, à altura da publicação dos “contosinhos”, conforme Guilherme de Castilho: "1901 - No princípio deste ano pede a sua transferência para Lisboa, onde é colocado no Regimento nº 2 de Caçadores d’El-Rei"[9].
Os contos, publicados todos em 1901, têm então a seguinte datação e paginação na revista Brasil-Portugal: breve apresentação dos contos e Partida para o Mar, no nº 49, de 1 de Fevereiro, pp. 13-14; A Mãe, no nº 50, de 16 do mesmo mês, pp. 25-26; O Mar, no nº 51, de 1 de Março, pp. 37-38; Tirar das Redes, no nº 52, de 16 de Março, pp. 56-57; Paramos, no nº 53, de 1 de Abril, p. 79; A Companha, no nº 54, de 16 desse mês, pp. 91-92; Inverno - Os Poveiros, no nº 55, de 1 de Maio, pp. 103-104; A Morte do Arraes, no nº 57, de 1 de Junho, pp. 141-142; O Vareiro, no nº 58, de 16 de Junho, pp. 151-152; e por fim, As Mulheres, no nº 60, de 16 de Julho, pp. 183-184.
E é o facto de esta ser a primeira edição autónoma dos contos que justifica estas referências alongadas às suas origens, ao seu tempo e contexto, na mira de servir tanto os olhares amadores ocasionais como os dos exegetas da literatura.

Distinguir no texto

Num país de costa e mar em que o cenário é "formidável, mas monótono" - o mar, e as personagens "são cheias de poesia mas humildes" - os pescadores, não há muitas obras a tratar essa matéria, por isso, a sua "única pretensão" era que aqueles documentos possam servir para alguém mais tarde “fazer a obra formidável que o assunto merece". Assim introduz Raul Brandão a série de 10 contos que de forma quase regular irá publicar quinzenalmente na revista Brasil-Portugal, nos primeiros sete meses de 1901.
Pretensão que se torna prenúncio, pois mais tarde, em 1923, vai editar Os Pescadores, um trabalho único e inteiramente consagrado ao mar e aos que dele tiram sustento. Como aquela, esta História do Batel é obra formidável de facto, não pela planificação e fina organização de enredos que deveras não possui, mas antes pela deflagração anárquica de tipos, situações e paisagens, por vezes repetidos e até mesmo faltando à verosimilhança, de tempo sobretudo, que seria necessária a um romance, a uma história com princípio, meio e fim, que também não é. Se há de facto uma constante, uma invariável marcante, é esse "fio de drama", essa trágica e grandiosa presença da fatal, única e verdadeira igualitária, a morte, à espreita nos tipos, nas paisagens, nas cenas.
A par dessas narrações empolgantes e coloridas, a penetrante humanidade a que submete a descrição das suas personagens, provocando natural e muito mais cavadamente uma solidariedade íntima que outros, décadas mais tarde, vão tentar arvorar em bandeira única, mas que será, e é, muito mais circunscrita de efeitos.
A História do Batel Vae com Deus e sua Companha é então, por assim dizer, um ensaio premonitório dessa outra de vinte e dois anos depois, que vai repisar as fraquezas e o vigor daquela, obrigando-nos aqui e ali a referências comuns, tal a conexão íntima de fundo e forma entre ambas e ousando nós considerar que, doravante, difícil será ao hermeneuta e ao simples leitor não interligar sentidos e maneiras, análogas ou dissemelhantes.
Estamos em crer que o autor teria a intenção de continuar estes contozinhos, pois nem o remate, o conto As Mulheres, parece ter esse intuito, nem podemos supor que Raul Brandão tivesse perdido voluntariamente a oportunidade de desenvolver o tema do naufrágio do Vae Com Deus, como o faz magistralmente n'A Morte do Arrais, n'Os Pescadores, e que é, de certa forma, indiciado já no conto A Mãe: "até que nessa madrugada, o batel saiu e a mãe foi-o seguindo pela praia fora..., sumiu-se o batel no negrume e ela ficou na praia até ao dia... : Má raios partam o mar!"[10].
Como n'Os Pescadores, a trama, no sentido novecentista do termo, é inexistente. Não há uma intriga, com ansiedades latentes ou desenlaces amorosos. Pequenas histórias, pequenas vidas contadas por aqui e por ali, numa diegese que é abafada ora pelo tempo, que é concentrado e manipulado - é o termo -, ora pelos detalhes dramáticos da vida piscatória, ora ainda pelo impressionismo da paisagem e das situações. As personagens são planas, imediatamente legíveis, sem grande profundidade psicológica, longe portanto das introspecções à Dostoievski. Vejamos as realmente importantes.
Manuel Pereira, o experimentado arrais do “Vae com Deus", não tem história quase... e a sua vida é como a vida de todos os pobres, ignorada, simples e grande", e, ainda à imagem daqueles, comunga com o mar a vida e amiúde a morte. Curiosamente este arrais, que "há muito que já não ia ao mar" acaba por morrer como "há muito que um pescador não morria assim", isto é, de velhice e em casa.
Em capítulo com o mesmo título, n'Os Pescadores, "o arrais é encontrado ao outro dia morto no cabedelo. O mar partiu o barco pela quilha, enterrando na areia a carcaça intacta da ré, e torceu-lhe o braço como quem torce uma corda. Mas nem o mar nem a morte conseguiram arrancar-lhe o leme das mãos crispadas". Curioso que com os anos, o nosso autor tenha querido destinar diferentemente dois arrais, notando nós ainda que uma certa excessiva pompa retórica no Batel, tenha dado lugar a uma contenção mais dramática de resultado estético bastante mais conseguido n'Os Pescadores. E, a talhe de foice, permitimo-nos duvidar da data inscrita no próprio conto deste último livro, 1893. Não podemos crer que face a um texto sobre o mar já pronto e face a uma publicação regular de labor constante, o autor tenha prescindido dele como contozinho, para além de, como dissemos, este último nos parecer muito mais maduro e consequente. Conhecendo no entanto o autor de Húmus admitimos que o início imberbe do conto tenha tido lugar naquela data, vindo a ser bastante remodelado posteriormente e que por razões de diegese, de sequência entre os contos, não tenha querido incluí-lo.
O "velhote, borracho, curtido, negro e desdentado (que) raro larga o cachimbo...de barro (que lhe) fumega nos lábios de sátiro", o Vareiro, tal como o arrais, é elemento da companha do Batel, sendo referido algumas vezes e sobretudo em capítulo próprio. A vida em terra é contraposta àquela do mar. "Este homem no mar é um valente. Nunca bebe quando tem de embarcar. É sóbrio e infatigável. Ri sempre. É dos melhores homens da companha, alegre, animando os outros no perigo, com o riso da sua boca desdentada e ditos maliciosos" e quando lhe oferecem de beber a bordo, "sorri-se com a boca desdentada, acende o cachimbo e emudece". Em terra, embriaga-se frequentemente e disputa-se quotidianamente com a mulher, ela "a princípio arranjadeira... depois começou a beber também" e pega-se com as jovens passantes num misto de atrevimento e de loucura.
Façamos referência ainda às interligadas personagens da Mãe, do filho (o moço da companha) e da irmã deste. Esta família funciona no conjunto dos textos como exemplo do traçado do indelével destino das gentes do mar e do hermetismo dos enlaces entre as famílias piscatórias. A Mãe, que "viu morrer avô, filhos e homem", casou com um pescador da Afurada, o moço com a filha de um poveiro e a irmã com um pescador de Paramos, para onde foi viver, decisão invariavelmente determinada pelo local da profissão do homem. Por outro lado o "moço" acaba arrais e com filhos, a mulher deste "envelheceu”, os filhos crescem e a vida é idêntica, monótona, triste e grande".
Terminemos este pequeno quadro de personagens com a figura da Ardida. Essa figura de mulher, desamparada pela morte ininterrupta no mar dos seus "filhos sem conta, uns soldados, outros marujos, na cadeia, na cova, espalhados pela terra. Tem filhos no Brasil, tem-nos sepultados no mar. Não teme a morte, como não teme a dor, tanto tem sofrido". Esta é uma figura recorrente na obra brandoniana, a mulher que espezinhada pela vida, ensandece e ganha heroicidade em simultâneo, tornando-se se não a voz da verdade pelo menos a cabecilha de revoltas. Assim, no conflito entre sanjoaneiros e poveiros, a vemos na frente dos homens, "alta, a saia negra em frangalhos continua a gritar: Mata! Mata! Parece que é ela que comanda à proa do seu barco, aquela frota de pescadores ululando de cólera"[11].
E estes são, entre outros, os heróis do Batel, melhor, pela postura que lhes brota da sua natureza, pelo contraste entre o confronto incessante com a morte e a miséria e a autenticidade e singeleza das suas vidas, chamemos-lhes anti-heróis.
Outro aspecto interessante da História do Batel, no que será mais uma vez acompanhado mais tarde n'Os Pescadores, é um modo de sociologia étnica a que o autor se dedica, caracterizando sem acanhamento, porque por dentro, os diferentes tipos humanos locais que conheceu e analisou. Isto apesar do atrás dito sobre os matrimónios inter-comunidades piscatórias, sobretudo no período da pesca da sardinha, e de " a filharada aumentar!... Pequeninos, ruivos, nuzinhos, andam aos bandos, como as gaivotas, pela beira d'água, gritando, rolando-se, banhando-se nesse oceano tão azul, tão manso, tão belo, que lhes há-de ser sustento e cova"[12]. O poveiro seria então rude, bronco, colossal, como a sua lancha pesada e ronceira, brusco, enorme, ruivo, valoroso e castiga os seus santos metendo-os no mar. Nasceu no mar, é quase um tritão. A poveira é feia, rude, branca. Tem o azar de ter a seu lado o minhoto que é feio, moreno, pequeno e velhaco. O sanjoaneiro seria palrador, mandrião, fino, louro, seco. A sanjoaneira pequenina, linda, palradora e mandriona como os homens, trazendo a casa lavada, é esperta, governa o homem e dirige o negócio, não se deixando dominar pela desgraça. O vareiro, esbelto, audaz, moreno, destemido. A varina: linda, morena, esbelta, bela e fecunda, honesta e laboriosa.
Do batel embarcação, afinal fala-nos Brandão muito pouco. Se com o conto inicial o barco navega e pesca, no segundo conto, pressupomos por analepse, o batel é novo: "o batel que naquele dia chegara da Póvoa", e dizemos pressupomos porque o autor poderia também ter a intenção de dar uma outra ordem aos contos no futuro. O seu nome, como o de tantos outros, era grosseiramente pintado a alcatrão na quilha: Vae com Deus. Este reaparece nas Memórias[13], algumas vezes n'Os Pescadores e, curiosamente, surge no conto 7, uma interessante fotografia da Cantareira, onde aparece um batel de nome "Vamos com Deus". A propósito da construção de embarcações, refere também o escritor os estaleiros da Póvoa como os que na altura poderiam produzir aqueles barcos. Merece citação este facto porque Brandão n'Os Pescadores ainda ouvia o martelar dos estaleiros de Miragaia, provavelmente referindo-se a tempos bem anteriores ao da escrita. A companha do batel era de quinze homens, entre os quais o próprio arrais e o "moço" e é também interessante a alusão à economia da embarcação, a saber: "cada homem tem em geral duas ou três (redes) e do que com elas tiram ao oceano pagam um quinhão ao barco: de cada dúzia de pescadas uma é para o patrão do batel - e ainda há um dízimo que se paga ao Senhor dos Navegantes para que os proteja"[14].
Dois motivos que perpassam estes contos, omnipresentes aliás como em todos os relatos d’Os Pescadores, são a paisagem marinha e as povoações costeiras, com primazia à Foz do Douro, lugar da Cantareira, berço do escritor. Inigualáveis, os poentes aparecem destacados, a cortar narrações, a colorir o escrito: "há poentes todos d'ouro, e poentes duma simples e grande tristeza"[15]; "todo o poente se enbrasa…há tintas de prodígio no horizonte; sobre o mar cai uma chuva de ouro"[16]; "céu em brasa, mar azul, uma poeira luminosa caindo sobre as águas, e o sol descendo redondo, rútilo, imenso"[17].
Claro, o mar que "é um ser..., a própria vida, criação e morte… como na terra há o mesmo ódio, idêntico amor; o sonho habita o fundo do mar"[18]; é também evasão e realidade: "para lá da linha de um amarelo tostado da areia - o mar agita-se profundo, velho como a terra, e todos os dias diferente, diverso quase a cada instante"[19]; por fim numa modernidade a impelir, em pintura, para a as sínteses abstraccionistas: "duas cores mais três linhas simples e sóbrias"[20]. E ficamo-nos por aqui na abordagem deste lado da escripintura de Raul Brandão, por tão evocado e analisado noutros autores.
Póvoa, Ovar, Paramos, Espinho, são referidos a espaço. Sobressai, como ponto de vigia do narrador, como lugar de gestação da exposição, a Cantareira e a Foz próxima àquela (Carreiros e o seu "pontão" aparecem apenas citados). A barra, o farolim (de Felgueiras ou Filgueiras, nome emprestado das rochas em que se encavalou, mas anónimo no texto), o cabedelo, as linguetas, a fatídica Pedra do Cão (ou Dente de Cão), Sobreiras e as ruas empedradas do Monte e da Corguinha, são o cenário principal das muitas pequenas tramas da obra.
Resta-nos distinguir ao nosso leitor, neste prefácio que não quer nem pode abraçar a multitude de leituras e a riqueza vária destes contos, mais alguns apontamentos diluídos entre uma outra compreensão do autor, a história local (que nos interessa sobremaneira) e a curiosidade pura. Comecemos pela referência a esse lugar-instituição a que Brandão chama a "Consulta". Refere-se-lhe por duas vezes, e assim: os velhos "juntam-se na consulta para conversar sobre o passado, o talho dos barcos, a sua manobra, o feitio das velas, o peixe que o mar antigo dava e a sua carestia de agora"[21] e "há muito que passava os seus dias lá em baixo, na Consulta, ao pé dos pilotos a olhar o mar"[22]. Definido claramente o lugar físico, pois "os pilotos" invariavelmente ao longo dos tempos referem-se ao local, na curva entre o actual Passeio Alegre e o início da estrada marginal ao rio e do lado deste, junto ao farol-capela de S. Miguel o Anjo, falta prosseguir a procura de modo a que, longínquas e indefinidas informações orais se possam confirmar: que seria local de passagem obrigatória de mestres e arrais, antes da partida para o mar, para consultar pilotos e velhos e sábios pescadores sobre as condições climatéricas e outras. E qual a ligação desta Consulta à "Pensão", tantas vezes citada pelo escritor n’Os Pescadores e no vol. II das Memórias.. Sabemos, pelo antigo Piloto-Mor da Barra do Douro, José Fernandes Tato[23], citando obra que não intitula, que "os da Pensão eram (pilotos) já permanentes, ou seja sempre os mesmo e portanto com vencimento garantido. Por tal facto, como tinham sempre pensão, o Piloto-Mor escolhia os mais idosos e até porque eram os mais conhecedores. Daí a razão do nome que designava a catraia", que era "uma piloteira a remo e à vela com o fim de levar os pilotos aos navios para entrarem"[24]. E visto que Raul Brandão, tudo o indica, usava referências geográficas e nomes próprios verdadeiros, pode ser interessante remexer memórias e identificar de caminho a "taberna do Coxo", esse "sumidouro" onde o Vareiro e todos os pescadores da Cantareira se juntavam a beber e a jogar com "cartas ensebadas".
Porque desapareceram do quotidiano, notemos ainda o uso referenciado no texto dos cachimbos de barro: "velhos de cachimbo de barro", "o Vareiro raro larga o cachimbo", "as bocas desdentadas segurando o cachimbo de barro", "o cachimbo de barro fumega-lhe nos lábios de sátiro". Estamos convictos que estes são os cachimbos de longa tradição marítima europeia que surgem frequentemente em escavações arqueológicas fluviais e marítimas (como em Aveiro, presentemente, mas também em Antuérpia e Amesterdão) e que eram constituídos por braço de madeira e recipiente em barro, com pouco mais de 1 cm de diâmetro, subsistindo, a nosso conhecer, exemplares apenas com esta parte devido à efemeridade do restante material.
Terminemos ainda com umas interrogações de ordem local e provavelmente sem resposta, e que abarcam não apenas estes contos do Batel mas a generalidade da obra brandoniana: porque não refere nunca a Capela da Senhora da Lapa, ali naquela curva atrás citada e inevitável do ponto de vista da paisagem e das crenças? E, ligado a este mesmo aspecto, mas de intencionalidade nossa muito mais prospectiva, quase um repto atrevido, porque não cita também a Igreja Matriz da Foz, quando afinal, segundo o que se conhece, e se repete, muitas vezes acriticamente, ele teria nascido e vivido na Rua da Bela Vista, nº 62, hoje rua Raul Brandão? Porque é que nas suas memórias de infância não há única intimidade com a imponente e incontornável Igreja Matriz e o seu adro, a dois passos da sua porta?
Estamos em crer que, podendo ser verdade que ali tenha nascido o homem de letras, não é a partir daquela casa que, quer n'Os Pescadores, quer nas suas Memórias, quer em muitos outros textos e correspondência, o escritor sobrevoa e penetra literariamente na vida piscatória de S. João da Foz do Douro e do lugar da Cantareira. Voltaremos ao tema, noutra oportunidade.

Honrar o autor

A recorrência da presença do mar e dos homens marítimos na obra de Raul Brandão, que não vamos neste local biografar, é conhecida. O que a existência destes contos nos traz de novo é a negação da tese segundo a qual o escritor teria tido uma fase bem precisa na sua vida literária em que se teria dedicado à "literatura impressionista", a virada para os temas marinhos e às viagens, correspondendo, grosso modo, aos anos de 1922 a 1926. O Batel prova que afinal, não só o plano de concepção d'Os Pescadores estava em mente, como também a vida piscatória foi matéria-prima na primeira fase da sua escrita em livro, em 1901. A sua primeira obra foi Impressões e Paisagens, em 1890 e, até à presente, tinha publicado, Vida de Santos (1891), História dum Palhaço (1896), Os Pobres (1900) e, nesse mesmo ano, O Padre.
É claro, e declarado pelo próprio, que nascer de Pai e Avô homens do mar, na Foz do Douro (12 de Março de 1867), numa época em que a pesca era de facto o pão e o quotidiano de todo aquele lugar da Cantareira, só poderia assinar um espírito sonhador, angustiado e poético como o de Brandão. "A paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância"[25]. "Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça às feras no canavial indiano foi mais fértil em emoção e aventura, que a armadilha aos pássaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro"[26]. Os estudos na cidade do Porto e a apagada passagem pela vida militar, onde "pedia por favor aos soldados que apresentassem armas e por obséquio executassem o direita volver"[27], e em cuja escola aprendeu "coisas inúteis que me deram mais trabalho a esquecer que a aprender"[28], são secundários nas suas lembranças literárias, quando comparados àquele da sua infância e a esse outro da sua vida em retiro campesino, em Nespereira, Guimarães, numa casa construída por ele (de facto uma construção que foi recuperada e integrada na nova) poucos anos (1903) após o seu casamento com Maria Angelina, em 1897. Teve, no Porto, uma aventura de tertúlia jovem e vanguardista, muito ligada às correntes circulantes, o simbolismo e o decadentismo, redigindo, em boa parte, o folheto-manifesto "Nefelibatas" (1893), e da qual afastando-se do seu lado exuberante e transitório, conservará, no entanto, a prosa poética, as expressões singulares (no caso das obras marinhas, o rico vocabulário do mar), as interrupções abruptas, e outras características agora adaptadas a uma escrita bem mais sólida e profunda. Húmus, de 1917, é uma construção originalíssima que impede classificações e que suscita reacções de adesão e de indução em muitos escritores portugueses.
Na mesma linha de meditação sobre a condição humana, mas sempre verdadeiro e original, é o volume O Pobre de Pedir, publicado postumamente.
Nas suas peças de teatro procura questionar os temas psicológicos mas também sociais, acreditando no poder pedagógico da arte dramática e interessar o público com "peças sintéticas" que fossem "populares e humanas”.
Mais tarde, virá a declarar: "da literatura moderna pouco me interessa. É arte de exterioridades, estranha, ausente do que é essencial na vida... coisas difusas, de superfície, habilidades, espuma"[29]. Tais declarações e a prática de uma arreigada temática social, não o isentam da crítica racionalista e materialista-dogmática com que foi claramente apoucado por e em sectores da sociedade portuguesa, diremos mesmo, de sectores que fazem escola e, literalmente, que dirigem a escola, daí a importância que tem de reafirmar algumas valias intrínsecas ao seu labor, refutando de passo algumas injustiças, embora "a gente nunca sabe ao certo se da infâmia poderão nascer coisas belas"[30].
Raul Brandão foi um revolucionário repartido entre um anarquismo contemplativo e um cristianismo primitivo, a cada passo interrogante e inseguro, procurando a resposta à questão-mor da existência. A sua demanda é, no plano filosófico, essencialmente igual à dos seus companheiros da Renascença Portuguesa muito mais do que aos da Seara Nova, tendo colaborado com ambos os grupos. É-o porque partilha muito menos certezas ontológicas e é-o, paradoxalmente, porque também muito mais asceta que os seareiros, que possuíam roupagens mais sociais e interventivas imediatas (relação não directa com a eficiência), não deixando de ser um escritor absolutamente comprometido com as suas personagens, com quem convive e que conhece intensa e solidariamente.
"Calcar, mentir, triunfar enfim, contanto se fique dentro dos limites de uma coisa honrosa a que por convenção se chama a honra, isto é, fora da cadeia"[31], representa implicitamente uma valorização da consciência individual, da moral própria, por oposição a uma lei que se afastou da sua génese e do seu intuito. Não está aqui apenas um personalismo de raiz cristã mas também uma profunda consciência social, manifestada exactamente na adesão e na exemplaridade dos simples e dos pobres. “Eu nunca pude pôr de acordo as minhas ideias com as minhas acções. Se pudesse, já há muito que estava na cadeia”[32].
O conselho-vaticínio do anarquista que lhe segredou “se queres ser um grande escritor, escreve sobre os pobres” foi cumprido e triunfante na obra brandoniana.
Por outro lado, os vanguardismos espúrios, esgotados numa procura subserviente às elites exteriores e, em simultâneo, a uma obsessão de originalidade que nunca foi, nem nunca será, o traço único de uma Arte, não foram o seu caminho. Foi autónoma, não seguidista, partiu de si e da sua vivência e alicerçou-se confluentemente numa tradição portuguesa e europeia. A contínua influência que produz é a prova real do seu valimento e da sua modernidade.
Faleceu a 5 de Dezembro de 1930, aos 63 anos de idade.
Longa vida à sua obra, onde redes cultas ou populares devem ser ininterruptamente lançadas, pois é, como dizem os nossos pescadores, um verdadeiro mar do peixe.

Joaquim Pinto da Silva
Tervuren, 6 de Março de 2006

Notas:
[1] Revista Brasil-Portugal, n° 1, de 1 de Fevereiro de 1899, Lisboa, p. 2.
[2] Revista Brasil-Portugal, n° 1, de 1 de Fevereiro de 1899, Lisboa, p. 2.
[3] Sarça Erótica - Obra imaginada e artisticamente dirigida por Petrus, para servir a Literatura Portuguesa - LXXXI edição de Petrus, Porto, s/d (1958).
[4] Raul Brandão, Exposição bibliográfica comemorativa do centenário do seu nascimento, realizada em Março de 1967, Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto, 1974.
[5] Cinquentenário da Morte de Raul Brandão, 1930-1980, Exposição Biblio-Iconogáfica, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1980, p. 47.
[6] Raul Brandão, Exposição bibliográfica comemorativa do centenário do seu nascimento, realizada em Março de 1967, Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto, 1974, p. 8.
[7] Sarça Erótica - Obra imaginada e artisticamente dirigida por Petrus, para servir a Literatura Portuguesa - LXXXI edição de Petrus, Porto, s/d (1958).
[8] Cinquentenário da Morte de Raul Brandão, 1930-1980, Exposição Biblio-Iconogáfica, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1980, p. 47.
[9] Vida e Obra de Raul Brandão, de Guilherme de Castilho, Livraria Bertrand, Amadora, 1978, p. 498.
[10] Revista Brasil-Portugal, n° 50, de 16 de Fevereiro de 1901, Lisboa, p.26.
[11] Revista Brasil-Portugal, no nº 58, de 16 de Julho de 1901, p. 184.
[12] Revista Brasil-Portugal, no nº 53, de 1 de Abril de 1901, p. 79.
[13] Memórias, vol. I, 3a. ed. Livrarias Aillaud & Bertrand, Paris-Lisboa, 1925, p. 11.
[14] Revista Brasil-Portugal, no nº 52, de 16 de Março de 1901, p. 56.
[15] Revista Brasil-Portugal, no nº 55, de 1 de Maio de 1901, p. 103.
[16] Revista Brasil-Portugal, no nº 52, de 16 de Março de 1901, p. 57.
[17] Revista Brasil-Portugal, no nº 55, de 1 de Maio de 1901, p. 103.
[18] Revista Brasil-Portugal, no nº 51, de 1 de Março de 1901, p. 37.
[19] Revista Brasil-Portugal, no nº 57, de 1 de Junho de 1901, p. 141.
[20] Revista Brasil-Portugal, no nº 49, de 1 de Fevereiro de 1901, p. 13.
[21] Revista Brasil-Portugal, no nº 57, de 1 de Junho de 1901, p. 141.
[22] Revista Brasil-Portugal, no nº 57, de 1 de Junho de 1901, p. 141.
[23] O Rio Douro e o seu Porto, de José Fernandes Tato, Porto, 1962, C. M. Porto.
[24] O Rio Douro e o seu Porto, de José Fernandes Tato, Porto, 1962, C. M. Porto, pp. 15 e 16.
[25] Raul Brandão, de João Pedro de Andrade, Arcádia editora, Lisboa, s/d, p. 16 .
[26] Memórias, vol. I, 3a. ed. Livrarias Aillaud & Bertrand, Paris-Lisboa, 1925, p. 13.
[27] Prefácio de Câmara Reys, in O Gebo e a Sombra, Contraponto, colecção Teatro de Bolso, s/d, p. 5.
[28] Memórias, vol. II, 3a. ed., Livrarias Aillaud & Bertrand, Paris-Lisboa, 1925, pp. 232/233.
[29] Recolha de depoimentos de RB, em Junho de 1921, Augusto Casimiro, in Seara Nova, n° 1457 de Março de 1967.
[30] Memórias, vol. I, 3a. ed., Livrarias Aillaud & Bertrand, Paris-Lisboa, 1925, p. 22.
[31] O Padre, de Raul Brandão, Vega, Cadernos Mnésis, Lisboa, s/d,, p. 17.
[32] Vale de Josafat, Memórias, vol. III vol., 1a. ed. Seara Nova, Lisboa, 1933, p. 33.

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