Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

26 de junho de 2015

Arte Bruta, a quem apoquenta?

(artigo publicado no As Artes Entre as Letras de 15.5.2015)

A solo, ausentes do mundo, sem objectivos outros que o gozo próprio, a sua solidão, o seu êxtase terapêutico, o artista – sem o saber e sem o querer – elabora o seu trabalho.
Essa sua obra, alfa e ómega em si mesma, ficará esquecida, guardada em armários e arcas de caves e sótãos, até alguém, por um acaso, a encontrar e … a deitar ao lixo, ou as analisar, as valorizar, as expor, introduzindo-as num circuito, de que não faziam parte, por inconsciente olvido ou voluntária discordância.
Que fique claro: o “artista bruto” (e o singular, em larga medida) não rejeitam o circuito cultural habitual, com a componente comercial como essencial, por vontade declarada. Simplesmente não o considerou, para ele não existia. Haverá forçosamente nas suas obras presença da “cultura” do tempo, por convívios mil, mas não há a pretensão de nele entrar, de colaborar. São franco-atiradores, não têm exército, existem sem alvo e sem inimigo.
Da mesma forma não se pode falar de transgressão na Arte Bruta, porque para transgredir necessário seria pertencer ao sistema que se transgride ou nele participar. Ora os artistas “brutos”, e muitos dos singulares, não estão no sistema, nascem e vivem fora dele.
Cada obra de Arte Bruta é um programa próprio, sem conceito de partida exaustivamente pré elaborado, é um universo em si: não depende, não implica continuidade, não dá seguimento. Ela “materializa uma realidade íntima, secreta, sem busca de reconhecimento, sem se importar com o olhar do outro, muitas vezes mesmo com o desejo de manter a obra clandestina, secreta, selvagem.” (Colin Cyvoct)
Em certa medida a Arte Bruta é um retorno à génese da arte, ao seu dealbar: um solitário, com os meios à disposição, transpõe em tela ou em objecto o que ressente interiormente, o que lhe vem à ideia, em exercício individual – sempre! – destinado apenas a si mesmo, a nada exógeno, portanto.
Estes “inexistentes”, estes “criadores na sombra” (Christian Berst) estão, no entanto, a provocar enfim uma revivificação da arte ocidental. Pelo seu talento, pela sua ousadia irreflectida, a sua criatividade inata, não apenas têm ganho um lugar no concerto universal das artes como também, e sobretudo, constituem uma fonte inesgotável de desafio e de inspiração para todo outro artista dedicado, formado, profissional.
Compreende-se enfim que face à importância crescente da Arte Bruta no mundo das artes, do que ela representa em termos de renovação e de, involuntário mas real, “mise en cause” das correntes artísticas dominantes, estas reajam pela indiferença, pelo olvido, mesmo pelo desprezo.
Em Portugal, o asfixiante domínio da “vanguarda oficial”, composta por uma dúzia de artistas literalmente enriquecidos nos loucos e gordos anos 80 e 90, do século XX, limitou, empobreceu e manipulou o nosso panorama artístico.
Poucos por convicção e muitos por complexo subserviente e ignorância essencial transformaram aqueles nomes em monstros sagrados, intocáveis, cerceando novos talentos e monopolizando presenças museológicas e representações nacionais no estrangeiro. Os colaboracionistas interessados e interesseiros foram – e são! – galerias, críticos e jornalistas de arte, agentes públicos de museus, de direcções-gerais, diplomatas, de autarquias, etc.
Como poderiam eles aperceber-se ou dar importância (ou talvez sim) a uma categoria artística que repõe a criatividade e a genuinidade do talento no cerne da obra plástica?
Em França tem sido mais fácil. Não que os “oficiais” e os protegidos não existam também, mas a dispersão geográfica, a independência dos agentes e a sua capacidade crítica e autocrítica é garante de mais seriedade. Por cá, em 20 km quadrados concentra-se, endogamicamente, a nossa dita “intelligentsia”. Esta convive entre a maledicência invejosa e o elogio mútuo.
Não está em causa a qualidade evidente de muitas obras desses artistas , mas apenas a idolatria que fomentam e que os alimenta e o poder efectivo que detêm nos sectores da arte e que deveriam cultivar a independência.
A quantidade de artigos e referências que a Colecção Treger / Saint Silvestre provocou nos principais jornais e revistas franceses da especialidade é de salientar. É elucidativa e contrasta com o silêncio “nacional”.
Nós sabíamos. Nós sabemos!

Joaquim Pinto da Silva
(membro do Conselho Consultivo da Oliva Creative Factory)


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