Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

5 de dezembro de 2008

Fernando Pessoa, Uma Colagem, a Minha

Conferência integrada no Curso para Actualização Linguística de Português, do Serviço Comum de Interpretação de Conferências (SCIC), da União Europeia; Orfeu, Bruxelas, 5 de Janeiro de 2007.



Publicado no Primeiro de Janeiro, de 16 de Julho de 2007.



Ao meu mestre José Augusto SeabraAlinhar à esquerda



Comecemos pela essência, pelo cerne, aquilo que de novo e inovador traz realmente Fernando Pessoa à poesia, à literatura, e mais, àquela indefinida e indefinível ideia geral das coisas, próxima e tributária da filosofia e do ser e que nos leva às idiossincrasias, às atitudes, às adesões e às repelências.

Eu fui o sou, sou o outrora agora
Começo neste momento a tê-lo sido antes
No futuro continuarei a ser outrora


Esta definição, programática pois claro!, uma assunção dos tempos todos num hoje onde se pretende toda uma literatura, um supra-Camões, ou seja, aquele que encontraria o equilíbrio entre a objectividade e a subjectividade.

Não sei quem sou, nem que alma tenho
Sinto crenças que não tenho
Sinto-me viver vidas alheias. Não eus sintetizados no meu eu
Sou plural como o universo

Poeta que foge à identidade, isto é à relação com o outro e com um tempo, buscando uma teoria universal, holística como agora se diz, da vida e do mundo, em que a transcendência se aproxima da materialidade e esta alcança os céus.
A poesia de FP é essencialmente irónica, no sentido socrático da palavra, a arte de pôr tudo em questão. Afirmava-se, negando-se. Recusando-se, assumia-se.
O seu modelo era o do drama shakespeariano, cada personagem tem ideias e sentimentos autónomos do criador, a heteronímia tinha isso mesmo, e mais: e identidades, e datas, e locais de nascimento, e profissões, e caracteres.

Estamos perante um drama poético e doutrinário, drama no sentido do teatro e no da calamidade; porque a sua busca empurrava-o para um beco cultural e psíquico. Não sem alguma razão, alguma crítica lhe apontava o facto de que punha as questões, os problemas, mas não os resolvia, não procurava a sua descrição e superação (Mário Sacramento, por exemplo). É verdade que este sector, de influência realista social (neo-realista, como em Portugal se designou, por eufemismo à época necessário) pretendia a literatura explicitamente comprometida, anatemizando toda e qualquer veleidade de procura estética pura.

Os meus escritos todos eles ficaram por acabar, sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito.

Dos variados e apetecíveis caminhos da verdade que o poeta sondou, sem se deter em nenhum, procede o seu ocultismo, misto de artifício literário, de fingimento portanto, e de ideias contraditórias em ebulição.

Não procures, nem creias
Tudo é oculto


Aquilo portanto em que os materialistas dogmáticos erraram na sua análise pessoana, foi então, como nós sabemos, por se basearem na errada concepção de que uma variação política, e só ela e por ela, nos conduz a um mundo e a um homem novo; dizia eu que, no que erraram, foi em não entenderam que a estética tem um papel fundamental na mudança das sociedades, e que as vanguardas, não detendo a exclusividade da arte, são essenciais para a renovação mental dum povo e das suas elites que, lenta mas inexoravelmente, terminam por as seguir, por se apropriar da sua herança, retirando-lhe os "incómodos", por certo, mas interiorizando uma boa parte. E, paradoxalmente, essa "vitória" é féretro dessa mesma vanguarda.

Descendendo o autor do Livro do Desassossego, segundo José Augusto Seabra, de três movimentos: o simbolismo francês, o panteísmo saudosista inglês e uma mistura de futurismo e cubismo, estava o poeta absolutamente consciente – e isto elimina duma penada um certo pretensiosismo "cosmopolita de avião” – que

O provincianismo vive da inconsciência.
O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela, em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.
É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele.


Quando nasce, a 13 de Junho de 1888, Fernando António Nogueira Pessoa, no Largo de S. Carlos, em Lisboa, não tem consciência de que a Monarquia entra na sua última fase de vida, com a decadência geral do regime e da sociedade. A revolta de 31 de Janeiro de 1890 no Porto, acérrima crítica à submissão da realeza às pretensões hegemónicas britânicas em África, é o início desse período, que culmina a 5 de Outubro de 1910, com a instauração do regime republicano. Essa República triunfante por “golpe de estado em Lisboa e passada à província pelo telefone”, como alguém comentou, não trouxe de facto nenhuma das promessas que arvorou, sobretudo no capítulo da paz social (45 governos constitucionais até 1926), da transparência dos negócios públicos e menos ainda na criação de uma elite esclarecida e firme. Apenas alguma coisa sobrou nas liberdades públicas e nas leis sociais.
Sua mãe, viúva quando ele perfazia 4 anos, parte com ele em 1896, juntando-se ao seu novo marido, para Durban, na África do Sul, onde este tinha sido nomeado cônsul.
Data de 1895 a sua primeira poesia “À Minha Querida Mamã” e é na África do Sul que cria o seu primeiro heterónimo, Alexander Search. Depois de estudos com muito bons resultados, volta, em 1905, para Lisboa, para junto de sua avó.

É na revista Águia, do movimento Renascença Portuguesa que Fernando Pessoa publica o seu primeiro artigo, onde analisa a nova poesia portuguesa e profetiza o aparecimento do supra-Camões de que atrás falámos.
É nessa revista, uma outra vanguarda, também ela ainda vítima da ignorância provinciana, que aprende e prepara o seu caminho autónomo e mais cosmopolita. Orpheu, primeiro número, sai em 1915 e que, segundo ele, é a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos. Entretanto tinha escrito Impressões do Crepúsculo, Pauis (que deu origem ao paúlismo), o Marinheiro, drama estático, Hora Absurda, Ode Triunfal, Opiário, Chuva Oblíqua (fundamento do interseccionismo, que, com distâncias reservadas, equivale na literatura ao cubismo na pintura e escultura). Nesta sucessão de ismos, em que as primeiras décadas do século XX foram pródigas, segue-se o sensacionismo, pois "a sensação é a única realidade da vida e da arte".
Suicida-se o seu amigo, o poeta Mário de Sá Carneiro, em Paris, em 1916, ano em que anuncia a saída do terceiro número de Orpheu que, apenas há poucos anos foi publicado.

Em 1918, morrem dois artistas plásticos que conheceu: Santa Rita Pintor (que destrói quase todas as suas obras antes) e Amadeo Souza Cardoso (a maior contribuição de Portugal para Europa, segundo Almada Negreiros). Publica poemas ingleses. Em 1920, escreve a sua primeira carta de amor a Ophélia Queirós. Colabora ou dirige revistas como Contemporânea e Athena. Dirige, com o cunhado, a revista de Comércio e Contabilidade, publicando ali artigos de temática socio-económica.
Em 1929 e 1930 inicia e prossegue a sua colaboração com a revista Presença, de Coimbra. Aliás é desta revista que vão sair os primeiros e sérios críticos e defensores da sua obra, num firme combate contra a unicidade literária.
Note-se também que, pese o seu vanguardismo essencial, e por isso mesmo, Fernando Pessoa nunca rejeitou em abstracto ou desvalorizou, ao contrário de muitos dos seus seguidores, o papel fundamental dos outros movimentos em que participou e que consistiram eles também profundas revoluções no panorama cultural nacional, a Renascença Portuguesa, da revista A Águia, do poeta Teixeira de Pascoaes e do filósofo Leonardo Coimbra, e a Presença, dos poetas José Régio e Miguel Torga.
Publica, em 1931, a tradução de o Hino a Pã, de Aleister Crowley. A Mensagem, em 1934, recebe um prémio, atribuído pelo departamento de propaganda do Estado Novo, tornando-se no seu único livro em português publicado em vida do autor.
A publicação das suas obras diríamos que não tem fim desde essa altura e, sobretudo, de há alguns anos para cá. Do famoso baú, onde se juntaram os seus manuscritos, saem séries de livros e textos acabados e por acabar que dão origem a novas leitura e análises.

Queremos, antes de terminar e numa ainda campanha iconoclasta, contra o endeusamento bacoco e redutor dos seguidores invisuais, que Pessoa tanto e tão bem criticou, que se é certo que a influência da literatura inglesa, lida compulsoriamente nas escolas de Durban, e a francesa, pelas mesmas razões, lhe é segura, não menos alguma portuguesa o influenciou.
Com algum atrevimento me lanço a colocar a mais que provável possibilidade de Fernando Pessoa ter lido esse mestre da literatura portuguesa que foi Raul Brandão, outra vítima da mediocridade da altura e de agora. O Livro do Desassossego é, se não filho, pelo menos parente, desses formidáveis livros de Memórias do escritor d'Os Pescadores.
Mas a prova fica para depois... quando for o julgamento.
Mas porque poderia então Fernando Pessoa ter ocultado essa fonte?
Porque Brandão, não hesitou em dizer que “da literatura moderna pouco me interessa. É arte de exterioridades, estranha, ausente do que é essencial na vida... coisas difusas, de superfície, habilidades, espuma".
E isto Pessoa não poderia subscrever, porque também ele estava consciente, que, no caudal intempestivo das vanguardas, onde parar é morrer, os habilidosos e os fazedores de espuma, encontram também o seu caminho, encostados e protegidos pelo fulgor dos que vão na frente.

Somos portugueses que escrevem para a Europa, para toda a civilização; nada somos por enquanto, mas aquilo que agora fizermos será um dia universalmente conhecido e reconhecido

Este vaticínio, tão firme e seguro, realiza-se. Essa Europa, de que Portugal era o rosto, como disse, é por ele conquistada, todo o mundo literário e cultural ocidental, a bem dizer.
Para quem também afirmava que


Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho


Pode-se então dizer, hoje, conclusivamente, que a sua solidão é a nossa companhia.


Tervuren, 5 de Janeiro de 2007
Joaquim Pinto da Silva

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