Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

1 de outubro de 2008

Do Meu Apagamento - do Gilreu para o Miguel Veiga

(apresentação de Miguel Veiga, na Livraria Orfeu, em Junho de 2005)

Conheço em detalhe as tuas misérias, espaventos, ardis, trabalhos, sucessos; os de ontem e os de antanho, encobertos, envoltos amiúde como eu, num nevoeiro, fresco e salgado, de mistério e contornos já legendários.
Nunca te vi na missa. Não há volta a dar à nomeada pagã que arrastas - a roçar a heresia -, as sessões espíritas em que participas (algumas disfarçadas de sueca), as tuas fraquezas e as ímpias ideias que, mais do que defendes, praticas repetidamente e com soberba.
Apercebo-te também os feitos - e os efeitos - das habilidades mundanas de que este livro em redor das letras é exemplo.E dizes: "não é uma espécie fragmentada de autobiografia, não é uma antologia, nem um ensaio de, não é um depoimento, uma confissão, um panfleto, uma intervenção. Nem sequer é um divertimento ou um passatempo."
Que raio de coisa é isto então? Que raio de estrutura é esta, entre as tripas da nossa terra e as alquímicas propostas para o mundo? Que mania essa, redentora e burguesa. Que ambição é essa de eternidade em 200 páginas?
Eu sei o que te move! No fundo, e o tu o citas, és mesmo um bocado - como todos os humanos e sem ofensa privada - como o burro do Brito Camacho que por andar toda a vida à volta da nora, julgou ter inventado a geometria. Tens é inveja de mim: da minha solidez, da minha pétrea paciência, da minha cumplicidade com o mar, da minha longevidade.
Querias é fazer como o Ramalho fez à "Flor granítica" e trepar no meu costado e lavrar escrita que perdurasse como a dos pastores de Foz Côa. Querias traçar o pôr-do-sol visto daqui. Mas, impotente, contentaste-te não em vê-lo rente-ao-mar, como o teu vizinho António, um nobre da poesia, e seguiste o Torga, no Sítio da Nazaré: 'o mar não é grandeza que se olhe do rés-do-chão" e, pum!, trepaste ao 6° andar, o último. Mais houvesse... e mais quererias.
Ambicionas chegar-te ao gigante Raúl Brandão, nosso conterrâneo, o degredado das letras pátrias, vítima presentíssima da luxúria das modas e da ignorância das vanguardas. Mas as misérias dos tascos da Cantareira e dessa barra, pão e féretro dos marítimos, está-te longe. Nasceste em berço d'ouro e as bizarrias dessa burguesia da cidade, mandona, activa, altiva e zelosa, bem europeia quase "avant la lettre", são-te mais próximas que o Bilé ou o Mandum.
E não faço o inventário restante das tuas invejas - são tantas! Teríamos o Garrett, o Camilo, o Eça, o Vasco, o Eugénio, sim o Eugénio, que foi-se à vida que se faz tarde, deixando um lastro choroso de palmeiras e gaivotas do Passeio Alegre, as nossas Mãos com os seus Frutos eternos de sabor a sal e sol e que levou a luz, aquela!, que gostaria de levar nos olhos quando morresse.
Mas, citando-te ainda, "já que seria deselegante ladrar quando nos convidam a dar um pé de dança num baile de máscaras", e, ainda contigo, "a humilhação e a queda dum homem aqui, no Porto, não dão prazer a ninguém", passo às confissões, não sem antes desabafar: quem te conhecer que te compre!
Afinal, a causa, última e única, desta que alguém lerá, ácida e bruta como tu gostas, é que me irritou sobremaneira no teu livro a tua fotografia. Não a pose elegante, "blasé", mistura de mimado menino da Foz e avisado cidadão do mundo, especado, plantado na tua varanda.
Não, não é isso. Mas é que esse teu corpinho sempre insatisfeito, sempre de olho, quando não binóculos, no mar fremente e atraente da vida, múltipla e diversa, oculta-me completamente. Tapaste-me, como o dedo do chinês tapava a Lua, como a árvore esconde a floresta.
Um passo ao lado e lá estaria eu, como fundo, negro, envolto na escuma e impante de único. E, para cúmulo, esse vira-latas do Timmy, cujos líquidos toda a árvore de Carreiros e coluna da Pérgula conhece, não lhe bastando monopolizar a bela Belicha, lá aparece, loiro, farto, inútil. É por ele também que esta existe: ele só fala, só dita, é medroso. Eu escrevo. E tu sabes que "três dedos com uma pena na mão é o ofício mais arriscado" que existe, como disse esse Padre defensor de índios, homiziado pelos dogmas.
E agora, verdade, verdadinha, à parte o meu estaliniano apagamento na fotografia e a preferência pelo animal em detrimento do mineral, tenho de confessar, perdoando-te, que a obra feita é de estalo.
Daquelas páginas brotam as nortadas atlânticas, aquelas que nos trazem o mar à boca e arrancam as árvores da tua avenida como quem brinca com lego. Delas ouve-se a doce melopeia da ronca prevenir os incautos que estão em terras do Douro final, outrora de Bouças, que chegaram ao reino da liberdade, com pergaminhos de honra lavrados em textos de épocas e penas diversas e asseverada com um coração real em relíquia.
Mais ainda delas se aufere, essa força que se evidencia no apego à razão, ao desaforo democrático de só vergar convencido, nunca pelos interesses e ainda menos pelas maiorias. Estar sózinho com uma ideia própria, no meio de uma reunião ou congresso - que felicidade! - e a certeza, a quase-certeza rectifiquemos, a tua, de que é só esperar, aguentar uns tempos e ... depois aí vêm eles, qual Timmy, à lambidela idólatra, e por isso falsa, "que sim, que tu é que tinhas adivinhado". Ficas no paraíso!
Mas agora, mais sincero ainda, creio que o talento todo está na Belicha, musa feliz e sofredora companhia. Sim, porque tu não és fácil.
Disse mal bastante de ti, cumpri então essa tua exigência para a amizade.
Só te peço, na próxima fotografia, arreda-te um pouco, para a esquerda ou para a direita, como também gostas que te confundam, e só ganharás em ter por detrás, como cenário, um rochedo firme, arreigado, vertical e frontal, que, vejo agora!, merece bem ser o teu brazão.
Gilreu

Tervuren, 18 de Junho de 2005

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