Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

20 de setembro de 2008

CONVERSA COM PEDRO BAPTISTA

ABRIL’99 — Nº50

Corria o ano de 1969, ano de eleições para a «Assembleia Nacional», e lá fomos em grande grupo, entre os quais Pedro Baptista, assistir a um comício da CDE (Comissão Democrática Eleitoral) — a oposição «consentida» — numa garagem junto à passagem sob prédios existente entre a Rua Júlio Diniz e o Mercado Bom Sucesso. A determinado momento, já final, quando a mesa e a maioria dos presentes, propondo um candidato futuro a Presidente da República, gritavam «Rui Luís Gomes», o tal grupo em que me encontrava, numa tentativa de abafar esse coro, desata a berrar por «Palma Inácio».
Sabendo, na altura, muito pouco acerca das personagens em causa, confesso que participei, admitindo como inquestionável a escolha imposta por alguém a quem se respeitava e, mesmo admirava, o líder Pedro Baptista.
Esse período iniciático para mim — descobri depois que o foi para quase todos os que acompanhei, incluindo o Pedro Baptista — foi de um certo romantismo e instabilidade ideológica, que a opção Palma Inácio bem prova.
Desde aí, da Comissão Cultural ao Grito do Povo, percorri com o Pedro, muito embora a mor das vezes sem trabalho político directo, um caminho de militância «profissional» que monopolizou a minha vida e me levou em vésperas do 25 de Abril à mesma situação que ele vivia: perseguidos pela polícia política, ele, no degredo, eu, clandestino, desertor do exército colonial, em Lisboa, controlando ainda todo o sector militar da organização que ele criara e que eu via como entidade superior, acima de qualquer interesse próprio.
Mudadas as circunstâncias em que os líderes intocáveis são «necessários», e passando em branco páginas que terão que ser escritas acerca de uma organização (OCMLP) e um jornal (O Grito do Povo) que também tanto contribuíram para o 25 de Abril, Pedro Baptista é, hoje, uma figura «menos líder» mas ainda pública, contestada e importante, como o são os que mexem e agitam.
Esta conversa, em dia soalheiro no nosso Molhe e nos 25 anos do 25 de Abril, pretende reafirmar a importância de Pedro Baptista na história política recente do país e, em particular, da Foz. Muito ficou por dizer e perguntar. Pressentem-se divergências e mesmo tensões nalguns dos temas abordados, a adesão ao Partido Socialista, a candidatura à Câmara Municipal de Gondomar, a participação no programa da TV Jogo Falado, a regionalização, a análise a Sporá, o romance que publicou, a análise das classes e do ambiente social da Foz, e vários outros e que, porventura, muitos mais seriam se pudéssemos continuar a nossa conversa por mais tempo.
Pela minha parte, e constatando que Pedro Baptista, afinal, continua aguerrido como dantes — o que eu, confesso, duvidava! — considero que muito há ainda a dizer acerca de grande parte das intervenções do nosso convidado.
Sem preocupações exageradas de produzir a entrevista perfeita e completa (que no fundo não existem), daquelas que esgotam tema e fecham portas, esta conversa poderá ser, se os leitores, o Pedro e nós próprios, o quisermos. o relançar de uma abordagem séria e mais fundamentada, que a distanciação temporal facilita, sobre uma geração que fez o 25 de Abril e que, despojada de condicionantes da intolerância antiga, apenas desde há pouco estará em condições de livremente escrever a sua História.

ABRIL’99 — Nº50

Pedro Baptista — Nasci aqui, na Rua de Gondarém. A casa onde nasci era uma casa muito bonita, era uma casa de bonecas, pequenina, mas muito bonita, nas traseiras da carpintaria do meu avô, e essa casa já foi derrubada por um «mamarracho» que permitiram que lá fosse construído, nos anos 60. Felizmente, se fosse agora já não permitiam.
Joaquim Pinto da Silva — Por acaso, tenho visto tanta coisa ser construída mal que parece que ainda estamos nos anos 60...
João Carvalho — Mas qual é a diferença dos «mamarrachos» dos anos 60 e dos anos 90?
PB — Mas há uma diferença significativa. À esquina da Rua de Gondarém com a Rua Dr. Jacinto Nunes, tem lá um «mamarracho». Agora, também estou de acordo convosco em relação a certos sítios, sobretudo o aparecimento de «mamarrachos» incompreensíveis, incompreensíveis do ponto de vista legal, que isso é que me perturba mais. É ver aí algumas coisas, muito menos que no passado e muito menos que noutras cidades, mas algumas coisas que, mesmo do ponto de vista legal, são incompreensíveis. Para bom entendedor... De qualquer forma, no Porto, a Foz é uma freguesia que, comparativamente com o que se vê noutras cidades, tem sido profundamente preservada e o Porto, em geral, é, de longe, a cidade mais preservada deste país. Cidade com a mesma pressão de construção civil que o Porto sofre, bem entendido. O que lhe permite, não é por acaso, ser detentora de dois prémios, o de Património Mundial e, agora, o de Capital da Cultura, e que, no fundo, têm a ver com isto. E quando nós vemos que a Ribeira teve para ser derrubada e hoje é Património Mundial, vê-se uma diferença completa de atitude para connosco próprios e de atitude em relação ao mundo, e do mundo em relação a nós.
JC — Não é, porém, exclusivo do Porto ser Património Mundial. Temos o caso de Évora, Sintra, Óbidos... O que é que o Porto tem realmente de diferente? Não estará isso ligado ao facto de Portugal, neste momento, e é neste momento que o Porto é Património Mundial e será Capital Europeia da Cultura, não tem isso que ver com o facto, dizia eu, de Portugal estar também na moda, neste momento?
PB — Acho que sim. Portugal tem estado na moda por diversas razões. Atingiu todo o tipo de objectivos económicos, a entrada no pelotão da frente da moeda única foi uma aquisição, para muita gente, espectacular, e Portugal está sendo, de certa forma, descoberto pela Europa e, por isso, está na moda. Isso é um facto.
JC — E acha que isso está a ser bem rentabilizado?
PB — Sim. Não é por acaso que apareceu a candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura, por exemplo; não é por acaso que se avantajaram a fazer a Expo'98. Como sabem, eu até tenho, tinha e tenho, e continuarei a ter, uma posição muito crítica, porque eu acho que devia ter sido feita com outro modelo, um modelo descentralizado. Mas, portanto, não é por acaso que, agora, Portugal é candidato ao Campeonato Europeu de Futebol, não é por acaso que é do Conselho de Segurança das Nações Unidas, está no centro do mundo, realmente. E estamos a rentabilizar porque a nossa atitude, hoje, face a nós próprios, é uma atitude de um orgulho sereno. Hoje, gostamos de nós, e não escondemos a nossa condição no mundo, e, no passado, havia uma atitude de menosprezo por nós próprios, ou então uma atitude xenófoba e imperialista e, portanto, eu acho que essa situação está superada.
JC — Mas antes de regressar ao Porto, aproveitava a sua abordagem em relação à Expo. Junto daquilo que é, agora, o Parque das Nações, o herdeiro da Expo, e daquela região que, antigamente, era periferia de Lisboa, e periferia afastada até, e onde neste momento se está a construir quase que uma segunda Lisboa, que vai atingir mais uns milhões de habitantes. Isto não contraria, muito claramente, a descentralização de que se fala? Aqueles milhões de habitantes que vão para ali, não vão trabalhar em Gouveia, ou em Viseu, ou em Portalegre...
PB — Olhe, sobre isso de descentralização, a minha posição é muito clara. A grande aposta na descentralização falhou. A grande aposta na descentralização foi derrubada politicamente e foi derrubada pelo bom povo português, no referendo sobre a regionalização. Não haverá mais forma nenhuma de descentralização a não ser a regionalização. E de forma que, eu aliás, aguardo neste momento que, aqueles que andaram a enganar o povo português e a dizer que não queriam a regionalização mas queriam uma descentralização, apresentem as suas propostas concretas. A história vai dar razão àqueles europeístas que, como em todos os países da Europa, defenderam a regionalização como única forma de descentralização possível. A outra, essa existe há centenas de anos, a promessa do poder central que vai, voluntaria e unilateralmente, descentralizar o país. Isso, há séculos e séculos que descentralização desse tipo é completamente inócua. Agora, neste momento, enquanto não fica claramente esclarecido, talvez só a meio ou no fim do próximo mandato legislativo, é que talvez o assunto volte à baila, e surja uma nova teoria da regionalização (em França foi assim, os franceses rejeitaram e passados uns anos quiseram). Aqui vai acontecer o mesmo, estou convencido disso. Até lá, o que tem que se fazer, são medidas concretas, específicas, que não são nenhuma reforma de fundo, não são nenhuma reforma global nem estrutural, mas são ajustamentos concretos que serão positivos ou negativos conforme a sua eficácia. Uma das coisas a fazer, e que o Governo iniciou, e vai, com certeza, para a frente, é a rede de cidades médias, ou seja, procurar que aquelas duas dúzias de cidades médias que nós temos, que não são o Porto e Lisboa, nem Braga, Coimbra e Setúbal, que são talvez um pouco mais do que cidades médias...
JC — O quê, Aveiro?...
PB — Sim, Aveiro, Guarda, Vila Real, Bragança, Portalegre, Évora, Castelo Branco, Faro, todas estas cidades médias não só estarem perfeitamente ligadas pela rede de auto-estradas, como estão a ficar, como também por todo o tipo de equipamentos sociais e culturais.
JPdS — Há ainda o incentivo ao crédito à habitação aos jovens vivendo no interior.
PB — Sem dúvida, exactamente. Para haver essa fixação. O crédito a habitação, em Portugal, o problema já é ao contrário, o problema já não é falta de crédito, é excesso de crédito. Com certeza que é absolutamente necessário o crédito à juventude, e uma série de medidas, que se falaram sempre mas que nunca foram implementadas, visando a fixação dos médicos, dos professores, dos jovens, tudo isso. Portanto, não só estradas como equipamentos sociais e culturais. Por exemplo, este projecto do Ministério da Cultura de reconstruir todos os teatros, de construir mais de uma dúzia de cineteatros no interior, é extremamente significativo. E toda a gente se lembra dos grandes cineteatros de Viana do Castelo, de Vila do Conde, de Bragança, da Guarda, e como tal, só o simples facto do aparecimento de uma boa sala de espectáculos nessas cidades, em que já quase há uma trintena de anos que não têm uma sala de espectáculos decente, ou seja, as que ainda existem, as poucas que existem, degradaram-se até ao grau mais baixo do hardcore. O simples facto de se fazer isto, mostra uma preocupação em procurar estancar a tendência de desertificação do interior intrínseco ao centralismo.
JPdS — Mas vamos voltar à Foz e ao 25 de Abril, àquela fase da Comissão Cultural da Cooperativa, que foi uma fase importante da tua, e da nossa, vida.
PB — Falar do 25 de Abril aqui na Foz tem que ser sempre falar também da Comissão Cultural da Cooperativa.
JPdS — Fala-nos dessas tuas duas facetas: a da Cooperativa da Foz e a do movimento estudantil que, em boa parte, lideraste.
PB — Eu fiz parte, a nível do movimento estudantil, daqueles que perceberam logo no primeiro ano, logo no início, e o início foi 68/69, que o objectivo daquele movimento estudantil era extravasar rapidamente para a população e, portanto, ajudar o movimento popular do derrube do fascismo, tão simples como isto. Há quem diga que isto é presunção mas, olha, talvez eu, na minha ingenuidade de adolescente, isto fosse a coisa mais simples do mundo e mais elementar. O contrário de outros movimentos estudantis que se mantiveram nas fronteiras estudantis. Estou a falar do movimento estudantil de Coimbra, por exemplo, que se manteve rigorosamente em torno da capa e da batina, e pelo menos, que a sua parte institucionalizada nunca assumiu a responsabilidade de se lançar na agitação de rua.
JC — Elitista?
JPdS — Estás a falar de 62?
PB — Não, elitista não. Se lhe quiseres chamar um nome feio, olha, podes chamar-lhe corporativo. Mas, digamos, que se manteve nas fronteiras restritas da Academia, era um movimento academista, institucional de Coimbra. Eu acho que é uma grande chatice quando em Portugal se fala da geração de 60, porque há duas gerações de 60, completamente diferentes; a geração do início de 60 não tem nada a ver com a geração do fim de 60. São completamente diferentes. É verdade que a geração de 60 procurava ligar-se ao movimento popular, porque havia muita agitação popular, de 58 a 62. Repara que esses anos foram anos de uma riqueza impressionante, houve a eleição do Humberto Delgado, houve a queda da Índia, houve o desencadeamento do início da guerra de libertação de Angola, houve o assalto ao Santa Maria. Em 62, também procuram ligar-se ao povo, o que aconteceu é que logo a seguir, 63, é um ano de recessão. O movimento de 62 morre completamente, porque a propaganda colonial, com o desencadeamento da guerra em África, consegue abafar toda a contestação, a pressão torna-se muito forte e, durante aí uns cinco anos, até 68, o movimento está em recessão.
JC — Provocada pelo início das guerras coloniais?
JPdS — E a exaltação nacionalista paralela.
PB — E com a propaganda colonial. Ir assistir à ida das tropas, no início, é sempre uma festa. O pior era depois, seis anos depois, já eram os caixões, uns em cadeiras de rodas, os que eram, e outros nem em cadeiras de rodas. De forma que, só em 67 e 68, também com os grandes acontecimentos do mundo, é que a agitação antifascista começou a esmagar completamente a propaganda colonial nacionalista, até não se ouvir falar mais dela e foi coincidente com a queda do Salazar (queda no sentido abstrato e concreto), e depois com a subida do Marcelo e as suas hesitações, um aquecimento das contradições, dos paradoxos do regime e depois com o choque petrolífero de 73, e entrar em derrapagem negativa, que nos permite criar uma situação perfeita do ponto de vista da disponibilidade do povo para aclamar o derrube da ditadura.
Eu, nesse aspecto, estou de acordo com a frase escandalosa de José Saramago, quando ele disse que se não fosse o 25 de Abril, estávamos todos no mesmo sítio. Essa frase causou aí muitos incómodos, principalmente nos camaradas dele, mas eu acho que ele tem toda a razão. Quer dizer que se o 25 de Abril não fosse feito daquela maneira, tinha sido feito de outra maneira qualquer, e se não fosse em Abril tinha sido noutro mês, se não fosse em 74 teria sido em 75 ou 76. Era inevitável. E se não tivesse sido através do MFA tinha sido através do MFB.
JPdS — Ou através do FCP...
PB — (risos) Esse foi só a partir de 77. E ainda precisou da estabilidade do regime democrático.
Bom, e então, voltando aqui à minha dupla condição, também dizes que era estudante e fazia aqui trabalho nos centros culturais populares, e o contrário também é verdade. Eu era miúdo e já estava aqui, como tu, metido na cooperativa, ainda olhando umas pessoas mais idosas que nós sabíamos que tinham sido combatentes antifascistas, mas já tinha sido há muitos anos, e portanto, nós sabíamos que eles nos olhavam com simpatia, eram essas referências muito abstratas, mas nós estávamos, no essencial, completamente sozinhos, o que tem, como sabes, uma desvantagem mas também uma vantagem, porque também mais vale só... Foi a partir daí que saltei para a universidade. Quando cheguei à universidade já tinha formação política.
JPdS — Muitos da nossa formação formulam e formulam-me a pergunta: então maoista, estalinista — como eu também — porquê aderir ao PS? Há coisas que deixaste para trás, como todos nós...
JC — Mas há uma coisa, antes disso, se me permitires. Há uma certa tendência para escamotear uma verdade, aquilo que me parece uma verdade, as pessoas da Foz vão tendo que fugir para as periferias por causa da especulação imobiliária, e a Foz é encarada muito, e tenta-se escamotear essa verdade, a Foz começa a ser encarada, e já era nos anos 70, pelo menos, como um local de dinheiro, de quase, digamos, de ricos; o que é que acontece, há aqui um excesso de liquidez, é normal olhar-se para a Foz como um pólo residencial com excesso de liquidez. Como é que surge, justamente neste meio, movimentos de esquerda, movimentos populares, como é que isso é possível, quando era mais normal que isso acontecesse nas freguesias mais degradadas?
PB — Felizmente. As pessoas hoje não fazem a mínima ideia do que era a Foz há trinta anos atrás e para trás. A Foz era o sítio em que as contradições sociais eram mais radicais em toda a cidade do Porto, e, basta lembrar, que ao mesmo tempo que havia, principalmente aqui na Foz Nova, em Nevogilde, a habitação de palácio, na Foz Velha também havia habitação da grande burguesia, e também palácios, mas não esqueçamos que a Cantareira era a zona mais degradada da cidade do Porto; a Cantareira, com a Sé, eram as duas zonas mais degradadas da cidade do Porto; se forem hoje pelas ruas, como a de Cimo de Vila, onde há alguns restaurantes «chiques», e alguns pubs, aquilo nos anos 40, eram ruas totalmente operárias. Não é por acaso que numa só dessas ruas ainda há três associações operárias, três ou quatro, todas elas constituídas no pós-guerra. Portanto, a Foz Velha era profundamente operária, ao contrário do que as pessoas pensam, e não é por acaso que a Cooperativa de Produção e Consumo dos Trabalhadores da Foz do Douro se funda exactamente com estucadores, se funda com vista a poupar uns tostõezinhos e a lutar contra o açambarcador, e, como tu disseste, e bem, é uma das mais antigas e mais fortes. Ao contrário do que as pessoas pensam, é perfeitamente lógico que O Grito do Povo tenha surgido aqui na Foz, porque a Foz era um dos sítios de maiores contradições sociais. Eu nasci aqui, em Nevogilde, no meio dos palacetes, na classe média, não sou oriundo da grande burguesia, e a partir dos quinze anos, toda a gente sabe, só lidava com as pessoas da Foz Velha e só parava aqui no Molhe. A minha pátria era o mar. De resto, frequentava era a Foz Velha e os meus amigos eram da Foz Velha. Aqui, em Nevogilde, havia um outro núcleo popular mas era lá em cima, no Largo de Nevogilde, que eram descendentes de antigos agricultores-pescadores, que só depois do 25 de Abril é que esses sectores despertaram para a vida política e nem sempre para a esquerda.
JPdS — Na caracterização das burguesias, também havia uma distinção agora mais latente ainda, que há uma burguesia que é geograficamente solidificada, pois nasceu um bocado da terra, na Foz Velha, enquanto que a de Nevogilde é muito mais recente, a maior parte dela. Havia também um certo interclassismo, que penso ser salutar entre gente rica e pobre na Foz Velha. Esse interclassismo, infelizmente, hoje, não existe. A diferença de classes existia, mas havia uma convivência que eu acho que no ponto de vista social, e numa perspectiva reformista, é mais sã do que a criação de bairros ricos, como hoje toda a Foz Velha e Foz Nova, e Nevogilde, tendem a vir a ser, assim como os bairros exclusivamente pobres e isolados como a Pasteleira, o que é lamentável...
PB — Bom, eu não quero entrar no positivo ou no negativo, muito menos nas vantagens das comunidades interclassistas porque senão começo a comover-me (rindo) com isso e posso, às vezes, provocar um novo dilúvio!... Mas se virmos isso noutro aspecto também podemos dizer que, se não fosse esta evolução, também muita classe média que veio para a Foz não podia ter vindo, e veio. Atenção que estas coisas na vida têm sempre dois aspectos. Um destes dias, eu estava a comprar uns livros num alfarrabista e disse ao indivíduo, disse-lhe assim de caras: «eh, pá, você tem uma profissão tão esquisita, eu, se tivesse estes livros todos em casa, nunca seria capaz de os vender. Deve ser doloroso para si, olhar para estes livros e depois ter que os vender». E disse também, «estiveram aqui uns pais a juntar estas bibliotecas para os filhos virem aqui retalhar isto tudo, nota-se que isto são bibliotecas diferentes...» E disse-me ele: «olhe, que se não fossem os filhos fazer isto, o senhor agora não tinha acesso aos livros dos pais.» De forma que há males que vêm por bem, e, hoje, tem que ser visto de forma positiva, o facto de haver uma democratização genérica aqui na Foz. É evidente que eu estou de acordo com algumas coisas que tu disseste, nomeadamente de haver maiores raízes comunitárias na Foz Velha do que na Foz Nova, é evidente. O que surge aqui, instalado nos palacetes, está muito ligado ao estrangeiro, nomeadamente à Inglaterra, e na Foz Velha também, não é? Mas talvez aqui mais. Depois, é naturalmente mais recente a vida comunitária entre eles, aqui foi sempre menor, e qualquer relação interclassista aqui nunca existiu, pelo contrário. Nevogilde era dos exemplos mais acabados do pedantismo da classe dominante em relação ao resto, do elitismo do seu autoconvencimento, do seu snobismo. Claro que, quando nós nascemos, esse snobismo já se via mais a parte de dentro do que a parte de fora, já se notava que era completamente oco, e eu assisti a colegas meus da escola primária, que eram todos meninos da classe dominante, eu notava que já se estava a desagregar aquela coerência, e também a guerra colonial estava a ser o grande elemento de desagregação à medida que os anos passavam. O discurso nacionalista entrava, cada vez mais, em maior choque com os próprios desejos deles, de continuarem uma boa vida, e portanto, continuarem com o seu estatuto.
JPdS — O Grito do Povo tem genes, tem raízes aqui na Foz. Houve a Comissão Cultural da Cooperativa, o nosso companheiro Penafort Campos, mas qual foi a importância deste movimento no Grito do Povo?
PB — Era um dos núcleos mais fortes. Posso dizer-te que, em determinado momento, eu tinha contabilizado 40 militantes da OCMLP que tinham vindo do grupo da Foz, 40 militantes dos quais muitos já funcionários e clandestinos, implantados aí no país. Portanto, não eram membros simpatizantes, eram pessoas que tinham dedicado a vida inteiramente a uma causa. Além deste núcleo, havia outros núcleos, outras associações operárias, outras associações culturais em que trabalhávamos, fazíamos implantação e procurávamos a formação de jovens. Claro que aqui, na Foz, as coisas estavam mais solidificadas, tínhamos uma boa retaguarda, conhecíamos isto como as nossas mãos, fomos muito hábeis do ponto de vista estratégico em relação à PIDE. É que, no passado, só era uma estratégia fiável e interessante aquela que se preocupasse, no essencial, em enganar a PIDE e em evitar a prisão, que tinha sido o destino sistemático de todas as tentativas anteriores, fora do PCP. Durante todos os anos 60, e essa foi uma grande preocupação minha, quando decidimos que a solução era a criação de uma organização clandestina para derrubar o regime, estudar bem como é que todas as experiências anteriores tinham fracassado, e por isso, é que mantive sempre uma grande distância entre as coisas na Foz e o que se passava na Baixa; procurei que nunca houvesse ligações a não ser as feitas por mim, entre a Universidade e o que se passava na Baixa, e os outros núcleos activos, na medida do possível, claro. Principalmente a partir de determinada altura, no sentido de não ter cá os «coelheiros» do costume a farejarem o que se passava. Até porque eu sabia que tinha havido outras experiências anteriores a partir da Comissão Cultural da Cooperativa, que a PIDE tinha liquidado. Tive acesso a isso vasculhando os ficheiros da biblioteca do grupo cultural, onde encontrei vários livros que faltavam na biblioteca e que estavam anotados na ficha, pela mão do José Augusto de Castro, dizendo «foi preso a tantos de tal, pela PIDE». Lembro-me de alguém que se chamava Lamego, que depois eu vim a encontrar operário da Grundig, e lembro-me de ver essa ficha com outros. O Zé Castro deixou isso apontado e, portanto, nós procurámos evitar qualquer ligação, porque a ideia é que a organização ia ter alguma força antes de ter a PIDE atrás de si, se não voltava à nascença.
JC — Quer lembrar alguns nomes de pessoas que partilharam esse percurso?
PB — Aqui, daqui da Foz? Em primeiro lugar, o falecido Penafort Campos, que era católico progressista. Convidei-o a entrar para fundar a organização clandestina, aqui junto do Salva-Vidas, porque ele tinha uma namorada cabeleireira que trabalhava ali em frente. Ele sorriu e disse-me: «mas eu não estou à espera de outra coisa, há muito tempo!». Estranhou é que eu não tivesse falado há mais tempo. Isto em 69. Porque do ponto de vista teórico, era evidente que nas intervenções que fazíamos na cidade inteira, e em todos os sítios em que havia acontecimentos culturais, havia sempre intervenções nossas que iam no sentido de mostrar a necessidade de derrubar o regime, para mudar a cultura. Começava-se por tratar de um problema cultural, passado um bocado, era inevitável que se percebesse que o fundo da questão era um fundo político, era preciso derrubar o regime. E isto era evidente, isto era bastante evidente. De forma que permitia que estas intervenções tivessem muita popularidade.
Ainda o aqui presente Joaquim José Pinto da Silva, o Quim Zé, lembro-me do Branco, o Américo, que está em Setúbal, foi depois, na OCMLP, responsável pela tipografia clandestina. Deixa-me contar: o Américo na véspera de ser mobilizado para a guerra colonial, tivemos uma conversa em frente ao Radar Azul, ali junto ao mar, despedimo-nos porque nessa noite ele não ia para a guerra colonial mas ia para França. Ainda tivemos uma conversa no sentido de ver se havia alguma dúvida, mas ele estava perfeitamente determinado. Parece até que fui falar com ele para o convencer a ir para França mas ele estava já mais que convencido. Estava perfeitamente determinado a não fazer a guerra colonial. Custasse o que custasse e arriscasse o que arriscasse, porque nós não tínhamos nenhuma promessa para as pessoas que iam para França. Tínhamos lá camaradas que os recebiam, mas a vida, depois, era muito dura porque o trabalho que nós obtínhamos sempre era trabalho nas limpezas, que começava às cinco e seis da manhã, a limpar os Bancos, e por um salário muito pequeno. Eram condições de vida muito difíceis. Também era mais fácil fazer a guerra colonial, nem a mãezinha se incomodava tanto!...
JPdS— (...)?
PB — Isso da mãezinha é uma peça de teatro que estou a fazer e que se chama assim, é sobre a Guerra Colonial.
JPdS — O Raul Simões Pinto, também, embora da parte da Pasteleira, foi através da Foz que militou. Houve o Aires.
PB — Sim, sim. E o Aires, o Aires que depois foi da CGTP, mas havia outro Aires, que está afónico. Mas, olha que esse era muito colaborante. Há aí malta que falava pouco mas mexia muito, mas este Aires mexia muito. Eu até me lembrava mais deste.
JPdS — Esta é uma terra de bons Aires!...
PB — Depois há o Rocha, o Rochinha, era o mais velho de todos nós, era e é. Era ourives. Ele fez há uns tempos uma descrição para o Público, sobre a fundação do Grito do Povo, que era uma experiência que eu não tinha. Ele disse que tudo começou na Foz, ele achava isso. Depois de passar a ponte, ele já tinha saudades da Foz, saudades da Cantareira. E então, quando vinha o jornal, nós íamos para o meio dos penedos, com a lanterna, lermos aquilo. E quando eu, no outro dia, vi-o a dizer isto para o Público, eu não me tinha apercebido desta dimensão das coisas, porque eu a partir dessa altura já andava para aí metido em casas, escondido, a fazer o jornal. Fiz os sete primeiros jornais.
JPdS — Eu também fiz um, em Guimarães.
PB — Ah, sim? Em Guimarães?
JPdS — Sim, na Quinta do Penafort Campos. Houve também alguns amigos nossos que foram fazer a guerra colonial. Na altura não perdoávamos, devido a um radicalismo geral das nossas posições.
PB — E quanto à questão do radicalismo, é assim, era impossível lutar contra o fascismo sem uma doutrina profundamente consolidada, globalizante, e como tal, com todos os ingredientes para se tornar quase uma doutrina religiosa. O combate, a disponibilidade total, só podia vir de um tipo de ideologia deste género.
JPdS — Para além da informação cerceada, da condescendência da Europa em relação ao regime, da condescendência dos EUA e de toda a Europa Ocidental...
PB — Sim, mas estou a dizer no que diz respeito a nós. Portanto, o simples facto de haver uma censura férrea permitia que conseguíssemos assumir doutrinas de origem, neste caso da China, por exemplo, sem qualquer contraponto, e dogmatizando facilmente esses ícones. Porque agora, e respondendo à tua questão, vou te dizer o seguinte. Eu só me tornei comunista em determinado momento, quando li o livro do Lenine Que fazer? (um dos primeiros livros que eu li), e cheguei à conclusão que só com um partido organizado militarmente, com uma disciplina militar, é que se conseguia derrubar o regime. Eu tornei-me comunista como método de derrubar o fascismo.
JPdS — Encarava-o, então, como provisório?
PB — Nem provisório nem definitivo. Encarava-o unicamente como método. Embora, já na Cooperativa, na Comissão Cultural da Cooperativa da Foz, eu tenha sido fundamentalmente interessado no pensamento anarco-sindicalista, e no pensamento socialista, que aliás, era o que nós mais tínhamos na biblioteca, que eram exactamente os livros que o José Augusto de Castro tinha adquirido e que se entrosava mais claramente no ideário do próprio cooperativismo.
Agora, quem conheceu a nossa prática, percebe perfeitamente como é normal um indivíduo que foi do Grito do Povo ser do Partido Socialista. Houve sempre boas relações com o Partido Socialista depois do 25 de Abril. Nós que só conhecemos o Partido Socialista depois do 25 de Abril. Houve sempre óptimas relações. Em numerosas ocasiões houve alianças entre nós e o PS, contra o PC, de forma que, vamos lá ver as coisas: para mim, a seguir ao 11 de Março, a revolução tinha acabado. Para mim, a revolução possível tinha se tornado impossível a partir de 11 de Março, ou seja, a partir do 11 de Março de 75, tudo aquilo que se fizesse já não ia para a revolução mas ia para o saco do PCP. E como tal, a partir dessa data, e sobretudo a partir do 25 de Novembro de 75, era muito claro que o que íamos ter era um regime democrático parlamentar para muitos anos. E que talvez essa democracia parlamentar não fosse o melhor regime, mas como hoje toda a gente diz, não há melhor que ele.
JPdS — Mas isso demorou-te muito mais tempo?
PB — Aqui, as convicções e a coerência foram valores que nós cultivámos muito, e de forma que, eu precisei, eu fui para casa, para os meus livros, para a minha reflexão e para experiências de base, experiências políticas de base e associativas de base, que no fundo, para mim, foram um laboratório antropológico. Portanto, tive um período de «nojo» de dez anos, e só ao fim de dez anos voltei à política.
JPdS — O teu livro, o teu romance de 93, ainda é um romance muito radical, em muitas coisas. Às vezes, escusadamente radical, na linguagem até, tal como referi na pequena apresentação que lhe fiz no nosso jornal.
PB — A literatura não se compadece com medidores de radicalidade ou da não radicalidade. Ora, vamos lá ver, radical é ir à raiz das coisas. O homem que faz literatura não tem nada a ver com o homem que faz a política. O romancista está numa situação de sozinho com o seu romance, ele é única e exclusivamente aquilo, não tem nada a ver com o resto. Hei-de escrever mais livros e todos procurarão apanhar os traços mais fundos daquilo que vi; se chamas a isso radicalismo...
JC — Isso já é um branqueamento, passe o lugar comum, em relação ao aparente marasmo político do Saramago?
PB — Não, se este livro é um ajuste de contas? Isso, é. Estava a escrevê-lo e tinha escrito, no mesmo momento, num bilhetinho, porque é que este livro não há-de ser um ajuste de contas? Mas agora é proibido ajustar as contas através de um livro?...
JPdS — Mas não vais escrever mais nenhum assim?
PB — Não vou escrever mais nenhum assim porquê?
JPdS — Não. Com a carga, eu diria que há uma carga de ódio...
PB — Olha que não (rindo). É só amor.
JPdS — É uma carga de ódio fora de moda e primária contra a burguesia que, hoje, num discurso humanista se considera também como «produto» de sistema.
PB — Nesse mesmo sentido temos que dizer que há uma grande carga de ódio no Eça contra a burguesia. É nesse sentido?
JPdS — Mas o Eça é contra a burguesia a partir da burguesia, e tu tentas ainda ter uma visão a partir do chamado «operariado», diria mesmo do lumpenproletariado.
PB — Porque é que eu hei-de caricaturizar, estigmatizar os defeitos do pé descalço? Essencialmente, o pé descalço, o defeito principal que tem, é o seu despojamento, ou seja, são as coisas que não tem e que devia ter. O Sporá retrata uma situação, retrata este sítio que toda a gente sabe, que havia os que tinham a mais e os que tinham a menos, e Deus, que fez estas coisas muito bem feitas, colocou naqueles que tinham a mais, exactamente a cagança, o pedantismo, a estupidez, a hipocrisia, e nos outros não. E de forma que, o que é que este humilde servo dos céus, há-de fazer senão descrever os defeitos onde os há, e abster-se de o fazer onde não os há?
JPdS — Ainda é muito neo-realista. Na obra, estás ao lado de uns contra outros.
PB — Nunca foi essa parte do neo-realismo que me demarcou do neo-realismo. O que me demarcou de boa parte do neo-realismo foi ser má literatura e nunca o facto de ser tendenciosa. Parece que já estou a perceber onde é que tu queres chegar. No fundo, o que tu estás a querer criticar é o facto de ser um romance «engagé», e isso eu assumo inteiramente. Escrevi este livro a pensar em 300 ou 400 pessoas.
JPdS — Que te foram próximas?
PB — Sim, sim. E já considerando outros que, não reparando neles, andavam, com certeza, numa atitude absoluta de compromisso, e neste sentido, o romancista não sendo o político, o romancista é outro político. O romance é uma forma literária, é a mais política de todas as formas literárias e, portanto, nesse aspecto, que eu saiba, não está proibido o «engagement». Agora, as pessoas estão, ultimamente, tão fascinadas pelo compromisso de algumas pessoas, em descreverem apenas os mundos virtuais de certos meios dominantes, que pelos vistos, ficam chocadas quando se descrevem os mundos reais de certos sectores dominados. Para mim, continua a existir na sociedade dominantes e dominados, continua a haver exploração. O Partido Socialista é o meu governo mas tem de trabalhar muito, é por isso que eu estou com eles, para trabalhar muito, no sentido de diminuir e de resolver a desigualdade social, contra a qual eu continuo mobilizado.
JPdS — És mais útil dentro do PS a fazer esse trabalho, aproveitando a força estrutural partidária, do que fora, como o homem que foi um líder?
PB — Digo-te uma coisa, Quim Zé, o que eu acho, e que disse à bocado, com o 11 de Março, que a revolução estava perdida, quis dizer com isso que a partir de Novembro de 75 o Grito do Povo não tinha mais lugar na história. Acho que o marxismo e o leninismo não têm mais lugar na história, como era visto em Portugal, a não ser que seja visto de uma forma tão flexibilizada que tenha pouco a ver com a tradição que teve entre 1917 e 1980. Aguardam-se novas sínteses, para enfrentar alguns problemas da humanidade, não chegamos ao fim da história! Aguardam-se novas análises e novas sínteses, sendo que já sabemos que as novas sínteses terão sempre uma vocação totalitária, de se endoutrinarem, de se totalizarem, de se tornarem mitos.
JPdS — E não foi sempre assim ciclicamente?
PB — Foi, foi, foi sempre assim. Agora, eu nunca esquecerei, não por vingança, mas por referência, as coisas por que passei, não por uma questão de vingança pessoal, mas porque é preciso não esquecer, é preciso que haja memória, é preciso que as coisas sejam difundidas, para que as próximas gerações não sejam vítimas daquilo que nós fomos, e é importante que se escreva, como eu escrevi no sentido de invectivar a hipocrisia, a intolerância, o pedantismo, a estupidez que é, de longe, o maior adversário da liberdade, o maior adversário de tudo, até o maior adversário do homem. Bem feitas as contas, acho que ainda o pior de tudo é a estupidez.
JPdS — E tu estiveste preso de facto ou foi só aquele degredo forçado?
PB — Fui preso a 16 de Abril de 73, e fui metido num avião, algemado, em Outubro de 73, para Angola. Com o avião no ar (rindo), nomearam-me chefe das forças armadas, fui substituir o Costa Gomes. Como me deram uma farda muito velha, ao entrar para o avião, quando cheguei a Angola, pensavam que eu era um velho militar, e até me puseram logo a mandar nos outros. E eu até nem sequer tinha assentado praça! Depois, estive numa espécie de uma companhia disciplinar.
JPdS — Vigiado ou suficientemente livre?
PB — Nessa companhia eram todos negros e dois brancos, era eu e outro, e apercebi-me logo que o outro estava mandatado pela PIDE para dar informações sobre mim. Por acaso, tivemos uma violenta altercação logo no primeiro dia, ele queria que eu dormisse separado dos outros, e eu fiz questão de dormir com os outros, e como estava toda a gente a ver, eu aproveitei a situação para demonstrar aos negros que há brancos e brancos, e de forma que tivemos um grande desaguizado. Depois, sempre como soldado, proibido de entrar na sala do soldado, proibido de mexer em armas. Depois estive em Nova Lisboa, mais uns meses, com o mesmo estatuto, mas aí toda a gente me protegia. O Comando mandava dizer que era extremamente perigoso e para terem muito cuidado. E o resultado foi que todo o mundo, de alferes a capitães, me apoiaram e acabei por fazer uma tropa, do ponto de vista físico, tranquila, embora estivesse sempre preocupado do ponto de vista psicológico, porque podia voltar a ser preso, na medida em que eu sou entregue pela PIDE ao Exército, ficando o meu processo a aguardar melhores provas, porque não existiam provas, podendo acontecer haver aqui alguma denúncia e arranjarem provas, e nesse caso eu voltava a ser preso. Aí havia uma grande tensão psicológica, que me levou a tentar fugir, mas nunca consegui sair de Angola. Não havia hipótese.
JPdS — E quem fica a dirigir o Grito do Povo, nessa altura, em Portugal?
PB — O Zé Queirós, o Rui Ramos Losa, o Francisco Morais e o Penafort Campos, este até em primeiro lugar. O Zé Queirós entra a seguir, os outros três já eram da direcção comigo. Comigo éramos cinco. Eu sou preso e eles depois vão cooptar o Queirós, há um correio que me leva informações e aqui também recebe informações minhas. Escrevo várias cartas, com tinta invisível, portanto, como sabes (rindo), a tinta invisível não é uma invenção do Vale e Azevedo, já existia na altura!...
JPdS — E a liberdade? Como soubeste do 25 de Abril?
PB — Eu sei, em inglês, numa emissora da Rodésia ou da África do Sul, do 25 de Abril. Aliás, já vinha tendo informações desde Março, dos correios que tinha, eu não tinha só um, tinha um directo para mim, mas tinha um outro indirecto, porque, entretanto, nessa altura, onde chegava um revolucionário antifascista criava logo um partido, e que com mais um jeitinho, em Angola, passado uns tempos, eu já teria ali uma boa célula. Já tínhamos editado livros do Mao, nunca falei isto a ninguém, mas numa fotocopiadora em Luanda, de uma grande empresa qualquer, já tínhamos editado uns textos, a coisa estava a funcionar também ali, e através deles, que eram oficiais milicianos do Exército, através deles soube do 16 de Março. Li o livro do Spinola, que por acaso lá não foi censurado e apareceu nas livrarias. Fiquei um bocado irritado porque só quando chega à página 126 é que ele diz: «Eis-nos chegado ao âmago da questão». Achei então que ele podia ter começado o livro só na página 126, e poupava um bocado, porque tínhamos muito que fazer. Soube então através de uma rádio, percebi a dissolução da Polícia Política, percebi logo que o golpe era de cariz democrático. Ainda quis falar num comício, em Huambo, mas uns africanos desacon-selharam-me. Disseram--me para eu nem pensar nisso porque achavam que a PIDE me podia matar. De forma que vim rapidamente para Luanda, em Luanda, fui ter com um amigo que me passou à disponibilidade, através de documentos falsos. Ele próprio se passou à disponibilidade e só lhe faltava um mês. A PIDE estava em greve de zelo no aeroporto e tudo foi muito fácil. Chegámos a Lisboa no dia 1 de Maio de 74, às três da tarde, apanhámos um táxi para o Porto, porque não havia outro transporte, e porque achei sempre que no Porto é que eu devia estar. Passámos por uma Brigada da GNR que me fez o sinal de vitória, e, então, fiquei muito preocupado porque suspeitei se não me teriam enganado outra vez!(rindo) Afinal não teria sido o Kaúlza a ganhar? Depois percebi essa coisa espantosa, mas pelos vistos verdadeira, de que a GNR se transformou numa guarda democrática. Demorei algum tempo a perceber mas depois acabei por ver que era realmente verdade.
JPdS — Como o Veiga Simão?
PB — Mas deixa-me dizer-te uma coisa, se não fosse o Veiga Simão não teria havido o diálogo dentro da Universidade, que permitiu o surgimento do movimento estudantil.
JPdS — É verdade. E muito do conceito democrático, sem dúvida. E o que é que faz um transformado, um revolucionário, um ex-revolucionário, um reformado da revolução, um revolucionário em stand by, no Jogo Falado? Há muitos antigos companheiros que questionam: o que é que ele anda a fazer, a defender o futebol, o «ópio do povo»?
PB — Eu nunca disse que o futebol é o ópio do povo, de mim nunca ouviram dizer isso. Eu sou de uma família de desportistas, ou melhor, o meu pai foi sempre um desportista, vivi sempre num mundo desportivo. Sou sócio do FCP desde nascença, frequentei o estádio das Antas, só não o frequentei entre 1972 e 1975, porque tinha passado à clandestinidade, e depois estava preso, e em 75 estava em Lisboa; só durante estes três anos é que não frequentei o estádio. Acho ridículo que ainda haja pessoas que fazem do futebol um tabu, o futebol é um jogo que projecta a vida real, ali no «altar verde», no altar simbólico. É um jogo como outro qualquer que as pessoas adoram e eu também. E mesmo na minha educação, nos colégios que frequentei, fui sempre virado para o desporto. Vesti a camisola do FCP durante três épocas, uma nos principiantes e duas nos juniores, também não vesti mais nenhuma camisola, a não ser aqui dos amadores, do TNT e de grupos que nós fazia-mos aí ah-doc, principalmente grupos de futebol aqui na Foz operária, que eu desafiava os tipos das faculdades para virem jogar contra nós, para nós termos o prazer de lhes enfiar aos 15 e aos 20, e demonstrarmos que o trabalho intelectual, sem o trabalho manual, era uma coisa perfeitamente desligada da vida. Hoje, até nem sei se pensarei exactamente isso, mas de qualquer forma acho muito bem ter pensado isso na altura. E é evidente que nesses jogos, o que acontecia, era cultivar-se a amizade e a fraternidade. Lembro-me, por falar no Rui Losa, que a única vez que ele se zangou comigo na vida foi exactamente no jogo de futebol em que eu jogava aqui no TNT e ele jogava pela Faculdade de Arquitectura, e houve um centro em que lhe fiz uma falta, que lhe pisei o pé antes de saltar à bola e ele ficou furioso comigo. Isto serve para mostrar que isto com o futebol, o desporto, mostra também a verdade de muitas coisas. É evidente que da mesma forma que as selecções são afirmações nacionais, também é evidente que as equipas dos clubes são afirmações locais, ou são afirmações regionais.
JPdS — Só o Benfica é que é nacional (ironia)?
PB — O Benfica é nacional barra imperial. O problema do Benfica é que o império acabou, algumas pessoas é que ainda não perceberam...
JC — E sobre a Plataforma de Esquerda, que é importante pois o Pedro Baptista é o único a entrar, por essa via, no PS, no círculo do Porto.
PB — Não, o Pina Moura também. O Pina Moura veio para o Porto aos três anos, é de Seia.
O que aconteceu é que depois destes anos todos em que eu estive afastado, dedicado aos livros e à reflexão, e a outras vidas, no seguimento deste período houve a queda do Muro, e no seguimento disso houve uma série de gente do PC que eu tinha vindo a seguir com a maior atenção, e com quem eu tinha vindo a fazer crescer a identidade, liderados pelo Barros Moura, que acabou por ser expulso do PC e por constituir a Plataforma de Esquerda. É nessa altura que eu acabei por aderir a eles, porque há bastantes anos que eu via que, se o PC tivesse vindo a ter uma evolução no sentido protagonizado por Barros Moura, eu teria aderido ao PC, se ele tivesse evoluído neste sentido.
JC — Um exemplo de uma boa evolução do PC europeu?
PB — É o italiano, por exemplo, de caras. Se estivesse em Itália, eu já teria aderido ao Berlinguer, mas depois também teria estado no Partido Democrático da «Sinistra».
JC — Diga-me, agora, como curiosidade: a sua vontade de ingressar pelo círculo do Porto, é o regresso, é marcar mesmo o seu lugar, a sua origem, o trabalho feito na juventude?
PB — Toda a gente sabe que é com um gosto muito especial que eu sou candidato pelo Porto, e não teria sentido uma pessoa como eu, sempre ligado à afirmação do Porto enquanto cidade, ter concorrido por outro lado.
JC — O seu partido político de outrora teve sede no Porto?
PB — Nós fomos o único partido que teve sempre a sede no Porto e que foi fundado, no essencial, a partir do Porto. Mas em qualquer círculo eleitoral do Norte, eu estaria identificado inteiramente com o meio, mas preferencialmente com o Porto. Sinceramente, poderia ser candidato pelo Alentejo ou pelo Algarve, pois a minha identificação nacional e étnica seria exactamente a mesma, mas a minha identificação cultural não seria igual.
Existem culturas diferentes neste país. Há naturalmente uma grande cultura ligada à língua portuguesa mas há culturas específicas em diversas regiões e, sobretudo, no Norte e no Sul há duas culturas com grandes especificidades que toda a gente conhece.
JPdS — E que «brincadeira» foi essa da candidatura à Câmara de Gondomar?
PB — Gondomar foi uma missão em que eu também quis dizer que se entra num partido não apenas para assumir as tarefas gratificantes e agradáveis, mas também para assumir as soluções que são difíceis, e numa situação em que ninguém estava disposto a assumir, com dignidade, um combate contra o Valentim Loureiro, a derrota sim, já se sabia, eu dispus-me a isso. Por outro lado, eu também queria dizer que, como deputado da república, que considerava o trabalho nas autarquias tão importante como o trabalho da Assembleia da República. Isto também era uma posição com alguma crítica a certos deputados que se vêem como membros de uma classe política de élite, ali nos sofás dos antigos cortesãos, com um certo desprezo para os autarcas do país real, do meu partido e de outros partidos.
JC — Não acha que para esses objectivos a campanha terá sido mal conduzida e ficou bastante aquém, isto é, não se fez ouvir?
JPdS — Mais ainda, não achas que fizeste o mesmo triste papel do Valentim?
PB — Não, não. A campanha foi bem conduzida, agora, foi a campanha possível. Eu só tinha um terço do PS de Gondomar comigo, e fora do PS de Gondomar também não foram poucas as facadas que recebi pelas costas.
JC — Logo, foi mal conduzida?
PB — O director da campanha conduziu-a bem, as forças é que eram poucas e eu fui lá enfrentar o Valentim e dois terços do PS. Fui enfrentar essas duas coisas juntas.
JPdS — Eu não assisti muito, não posso afirmar muito em concreto, mas dizem que usaste as armas do Valentim.
PB — O problema é que eu sabia que corria os riscos todos de passar por essas coisas. O problema é que o PS de Gondomar estava absolutamente ajoelhado ao PSD quando eu lá cheguei, e eu tinha de o pôr de pé. E isso consegui: pôr de pé um terço do PS de Gondomar. E a prova é que Gondomar a seguir já não foi aquilo que era. Reparem no entubamento do rio, em Rio Tinto, que efectivamente já não foi para a frente, reparem numa série de questões que eu levantei na campanha, que por pressão popular acabaram por se implantar.
JC — Há uma primeira fase em que foi muito observado que o seu papel ter-se-á resumido bastante a uma resposta a todos os disparos do candidato. Isto é, não chegou a protagonizar, não criou as situações de debate.
PB — Não, isso não foi assim. Os media definiram Gondomar como uma zona em que tinha de haver murros, e que tinha de haver sapatadas e não sei quê. Alguns media definiram isto previamente. E então, isso era o preço que eu tinha de pagar por algum protagonismo nos media, que era a única forma que eu tinha de chegar às pessoas de Gondomar, era tornar-me conhecido. E os media só trataram de passar esse tipo de coisas. O meu programa, por exemplo, nunca passou, as minhas ideias positivas, que são aquelas que hoje são consensuais em Gondomar. O Valentim é o que ele defende, só não defende, ainda, porque não é capaz de o concretizar, a necessidade de levar um pólo de ensino superior para Gondomar, e porque o ensino superior também é uma coisa que lhe mete muita confusão.
JC — Cá está uma crítica à condução da campanha, porque a assessoria de imprensa é da própria campanha.
PB — Mas é que a assessoria de imprensa não consegue impor aos jornais aquilo que eles não querem. Quando o Tal & Qual faz uma manchete, na primeira página, a dizer que eu e o Valentim vamos andar aos murros, e que isso resulta do jornalista me perguntar se eu não tenho medo dos murros do Valentim, em sentido figurado, e eu dizer que também tenho uns murros para lhe dar, também no sentido figurado, eles fazem disto a primeira página a dizer que vamos andar ao murro. Quando os media querem isto, não há nada a fazer, e este era o preço que eu tinha a pagar.
JPdS — Mas eu esperava mais de ti, Um ataque cultural cerrado ao adversário
PB — E esse ataque cultural foi feito, constantemente, só que não passou nos media. Nalguns até passou. O Público, por exemplo, fez uma cobertura honesta da campanha. Agora, outros jornais só queriam folclore.
JC — E a sua próxima candidatura, será para quê?
PB — Não sei, não faço a mínima ideia (rindo). Não tenho, neste momento, nenhum plano, vamos lá ver como é que as coisas correm.
JPdS — No mínimo, continuarás como deputado?
PB — Não, isso ver-se-á...
JPdS — Não está fora dos horizontes...
PB — Não, não. Não está fora dos horizontes. Eu já, diversas vezes, afirmei as minhas opções, os meus desejos políticos, e sou assim, umas vezes afirmo outras vezes não afirmo; e agora, estou numa fase de não afirmar. Não tenho nada definido...

ABRIL’99 — Nº50

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