Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

14 de julho de 2008

Para a IL

Para a IL, no dia do seu aniversário, 22.10.2003

Mas que Jornada esta!

Acordei com raiva! Afinal, nada de novo, todos os dias é assim. Este grisalho céu está distante do nosso, como a restinga está do horizonte.
Nessa restinga, habituamo-nos a ver por entre paus de oliveiras e laranjas arrancadas pelas cheias, uma infinita quantidade de objectos, uns banais, outros repulsivos, a que nunca indiferentemente reagíamos, mantendo sempre a atracção da possível descoberta. Quem sabe se nas derradeiras horas um náufrago não teria deixado uma mensagem, ou um lanternim de barco afundado não estaria encoberto na gravilha, ou ainda, a moeda, a volta, o anel dos desgraçados não brilharia meio encoberto na areia?

Ir à praia era o dia-a-dia, mas é curioso que, sendo o Verão a animação, a descoberta das moçoilas da aldeia, o piscar d'olhos desejoso e provocante, o divertimento, é do Inverno que guardamos as lembranças: o aterrador barulho, constante e abafado, do mar, a tempestade, "a que derrubava palmeiras", a nortada, nunca gélida mas penetrante, as bonanças que nos permitiam, pelas mãos seguras dos nossos Pais – que saudades! -, ver os escolhos dos navios, a marginal devastada, o acirrar da miséria pelas cheias na Cantareira, onde ainda não passava o Chico Fininho.

E do alto do meu Farol, o da Luz, quando olhava o teu, o da Barra, pensava que, como mundo, era bastante. Tanta gente, a nossa, conhecendo-lhes as misérias e a grandeza, as vias, o comércio, as casas, ricas e pobres emparelhadas, o rio e o mar sem os quais lhe faltaria o ser, o Monte e Túnel das minhas avós, o imenso jardim de acácias e araucárias, os campos lavrados, o sável a saltar nas linguetas do Marégrafo, a Casa Mourisca mentirosa da sua idade, o Bico de Sobreiras a marcar a curva, a Pérgula a recordar magalas e engates, a viela dos Abraços perigosa e confidente, e por aí adiante.
Sabemos agora – já desconfiávamos! - que outros mais exóticos e diferentes mundos não apenas não apagaram aquele como o valorizaram, numa mistura de realidade e de visão ideal a que a ausência se presta.

Aquela rua cheirava a mistério: empedrada, estreita, bordejada, ora de altos muros ora de cantarias trabalhadas, tinha à ponta, o grande, o sempre fechado castelo, onde à socapa se trepava pelas frecheiras de granito, e no topo, o religioso Antero de Figueiredo, a guardar o mercado e o lavadouro da Ervilha. Cercava o que? Será como dizem os sabidos, as posições liberais nos longínquos mil oitocentos e trintas, ou já vinha de trás, e protegia o centro da aldeia, o da rua Central, o Paraíso, o largo que deve o nome à feira que ali houve?
Se me recordo das britânicas festanças do colégio, da casa de bonecas do Zé, o nosso futuro campeão nos courts, o palacete dos Peixotos, o carpinteiro, e tudo o resto, o que está e o que se foi, mais viva na memória, signo e sinal da tortuosa via que ligava os campos da Ervilha aos baluartes do fortim, estás tu, I, querida amiga, espaço único e integrado no que eu próprio sou.
Na boca o sabor a sal. Vir-nos-á da espuma transportada pela ventania, contra a qual abríamos a boca no Alto Castelo, ou do simples pousar, silencioso e regular nos nossos lábios, das gotas vindas de cima?
Com verdade, não posso eu, nem tu, dizer que é apenas tristeza.
Parabéns!

QZ

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