Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

3 de outubro de 2008

Le Monde est fou, j’adore - António Saint Silvestre

- Cannes, de 5 de Julho a 30 de Novembro -

Abre amanhã, 5 de Julho, uma exposição de obras de António Saint Silvestre, no Centro de Arte La Malmaison, em Cannes, ali permanecendo até 30 de Novembro.
Na famosa Croisette, La Malmaison, uma mansarda de luxo recuperada, é propriedade da câmara de Cannes onde se têm exibido, desde 1983, grandes nomes da arte do século XX: Chu Teh-Chun, Matisse, Miró, Picasso, Masson, Cesar, e alguns outros.
António Saint Silvestre um português de múltiplas origens, nascido em Moçambique de sangue alentejano e italiano e há muitos anos a viver em Paris, integra-se, parcialmente, como vamos ver, nessa corrente artística nascida em meados do século XX, a Arte Bruta (também chamada Outsider Art, Arte Incomum, etc.).
A criatividade, a invenção, é o pendão desta corrente, tão antiga quanto o homem, pois considera-se sem filiação. É uma arte que pretende ser acultural, limpa de passado, indemne à transmissão de saber, às escolas, ao mimetismo ou ao prolongamento do que quer que seja.
Cada obra é, por assim dizer, uma arte em si, uma escola sui generis e irrepetível, pois não pretende fazer um corte com um passado que não reconhece, nem prescrever normas a filiações que não deseja.
Daí que, na I exposição de Arte Bruta, no Museu de Artes Decorativas de Paris, em 1947, organizada por Jean Dubuffet, o trabalho de marginais, doentes psíquicos e afins constituísse o principal acervo da mostra.
E onde é que António Saint Silvestre encarreira com esta corrente artística? Ele que, em fim de contas, é um homem de cultura, como Dubuffet o foi, como se abstrai então dos conhecimentos e influências recebidos para se definir também como um artista marginal?
Olhando a sua obra, nomeadamente a série das cadeiras, apercebemo-nos por certo de um desprendimento inicial da significação, de uma liberdade criativa explosiva, dissidente, mas não podemos deixar de referir uma ironia crítica para com a sociedade, a religião e os mitos contemporâneos.
A sua insolência não é a de um marginal puro, do que se auto-exclui, mas antes, por muitos disfarces plásticos que usa como mestre, a de um revoltado que utiliza a liberdade criativa para apontar o ridículo, para ironizar.
A sua dissidência é, por isso, mais aparente que real, é um jogo plástico onde um seguramente forte sentimento de outsider existe, mas em que se divisa, por entre uma extraordinária imaginação, feérica muitas vezes, um impulso mortífero de crítica mordaz e de acusação.
Saint Silvestre não é o autista puro, aquele que seria o protótipo do “artista bruto”, que Dubuffet realçou, mas antes permanece oscilante entre um desprendimento, muitas vezes real, da vida e dos interesses, e a raiva de uma consciência cívica não completamente sublimada, perante uma sociedade que gostaria que fosse diferente.
Depois há essa “esquisita coisa” que é a cultura, que nos impregna, nos molda, nos forma e deforma, mas que é difícil de abstrair, pois ainda como Dubuffet bem compreendeu acerca dele mesmo, um homem culto nunca será um sério negacionista do seu estado. Foi desvirginado sem remédio, irreparavelmente o hímen da ingenuidade rasgou-se e os sinais culturais brotam nas suas práticas artísticas quase que involuntariamente, ou sem uma consciência global.
Assim, António Saint Silvestre não consegue fugir a representações do mais fundo conhecimento cultural, como por exemplo a bíblica Salomé despeitada , desfrutando a vingança à vista da bandeja com a ainda quente cabeça de S. João ou o gozo cáustico com o militar medalhado e sua dama, galinácea como ele, em ousado e vistoso decote.
Numa faceta um pouco mais leve, mas também não totalmente isenta de mácula cultural, apresenta-nos a sua enorme série de insectos gigantes, auto-sustentados, ou mínimos, em peças de joalharia. Coloridos garridamente nem todos têm o ar pacífico (ou laliquiano nas jóias) que aparentam. Há em muitos um aspecto monstruoso finamente retocado, como que nos acordando para as diversas facetas de uma natureza que, no fundo, desconhecemos.
Uma referência ainda para uma perspectiva onírica, mesmo alucinatória, que acompanha as suas obras marcantes. Mas ainda aqui, a implícita crítica, escárnio nalguns casos, às mitologias dominantes, pelos cupidos, pelos gostos da moda, pelas figuras históricas, pelos legumes erigidos em estátuas, tudo isso evidencia uma necessidade funda de intervir, embora um quadro geral de um contraditório e perturbador alheamento do resultado a haver não consiga mascarar.
Os seu auto-retratos, mergulhados em condecorações e comendas de caleidoscópicas cores, são bem uma afirmação do que atrás temos tentado provar: a obra de António Saint Silvestre oscila entre uma inata apetência pela originalidade e um desinteresse genuíno do resultado, e um compromisso, uma conexão involuntária com uma sociedade a que pertence e em que participa. Essa originalidade e uma qualidade plástica e técnica incomuns garantem-lhe um lugar de pleno direito no panorama das artes plásticas contemporâneas, sobretudo em Portugal onde obra assim não é corrente, lugar esse para o qual ele em boa parte se auto-arreda, mas a que nós, por ele e pela Arte, estaremos atentos.

Joaquim Pinto da Silva
Tervuren, 3 de Julho de 2008

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