Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

1 de outubro de 2007

José de Guimarães

(aquando da visita à Orfeu, Outubro de 2007, Bruxelas)

Minhoto, tem no sangue a cor, o verde da terra e do vinho, correu África, de onde trouxe as imagens, os outros símbolos, que mistura com os primeiros e com os seguintes, e doutras origens, interminavelmente, e que nos serve nas tais cores, nos tais enigmas, no tal vocabulário em que é único, que são dele, e que passa para pintura, e escultura, e mobiliário urbano, e néons, e papagaios de papel, e, no milhões de vezes reproduzido, logótipo turístico do país.
Donde nos vem, então, por onde andou e aonde chegou este José (que homenageia a sua terra natal em pseudónimo)?
Pouco mais de 17 anos andou o nosso artista entre o Toural e os Arcos, a correr pelos largos de Santiago e da Mumadona, a trepar à Penha, a imaginar Afonso a guerrear na ameias do mais famoso castelo do país, e a namoriscar, com certeza, nos famosos arraiais minhotos, entre viras e foguetes.
Nada que nós não saibamos acerca da importância dos períodos da infância e da juventude na nossa formação e desenvolvimento: Se não tivesse nascido e vivido em Guimarães os primeiros dezassete anos da minha vida, não pintava como pinto. Desde os meus começos que a exuberância da cor foi nítida nas obras que realizei. E se então a estrutura das cores era ainda indefinida, nelas haveria talvez um certo sentido da festa, do espectáculo, do barroco. Isso reflectia de certo modo o mundo que me circundava. O Minho é verde e barroco. As romarias das festas gualterianas de Guimarães são amarelas, douradas e vermelhas, o céu azul. Se a África me transmitiu o sentido do símbolo, o Minho deu-me a paleta com que pinto.
A África, onde profissional e compulsivamente esteve por duas vezes (?), leva-o à compreensão de uma simbologia existente em muitas peças de arte negra e sugerem-lhe um projecto artístico movido por uma tentativa de osmose entre duas formas de expressão plástica, europeia e africana. A sua Vénus Africana ”deve ser uma das obras-primas da actual arte portuguesa”, no dizer de Fernando Pernes.
Mas o artista não trai a cultura ocidental… não pinta quioco, nem luena, nem babuba…pinta Europa e África numa situação de simbiose, de procura de uma plataforma de entendimento e compreensão (Mesquitela Lima).
Mas, seja dos vinhedos ou das savanas, os seus morfemas gráficos (como alguém chamou) são mais vitalistas do que apaixonados, num erotismo bem presente, pagão e quase selvagem.
Pelos fins dos anos 70’s, na Bélgica, Eslovénia, Brasil, e outros países, tem início uma forte internacionalização da sua obra. Nesse sentido, seguem-se uma grande exposição na Fundação Gulbenkian em 1984 e, no mesmo ano, no Palais de Beaux Arts, em Bruxelas. Recordo, de passagem, as obras de José de Guimarães que tive a oportunidade de ver na Fondation/Stichting Veranneman, em Kruishoutem, pouco tempo depois, e que revisitei várias vezes, até à infeliz extinção daquela fundação há uns anos atrás.
Basileia, em 1989 – a que acede via a sua galeria de Milão –, é um outro passo importante na sua carreira. As suas esculturas em pasta de papel levam os japoneses a convidá-lo a fabricar papagaios na sua tradição ancestral.
Um reconhecimento claro e importante vem-lhe exactamente do Japão, onde uma vocação afirmada, desde aí, se manifesta, em intervenções em espaços públicos, numa investida simultânea pelas áreas do design e da arquitectura – de que o filme de Mário Grilo é explícito –, mas onde os constrangimentos próprios àquelas disciplinas não o impedem de ser criativo e ousado, como só a pintura e a escultura o permitem. Sempre ascético no modo e na forma, sempre exuberante na cor.
Na montanha de Tsumari, nos ambientes urbanos, no interior de universidades, Guimarães é o novo Mendes Pinto a fascinar o império do sol nascente, desta feita não com as armas de fogo, mas com o fogo exuberante, colorido e pragmático da suas armas sinalético-simbólicas, em néon, em móveis urbanos e em trabalhos museoláveis.
Seguem-se a China e o México, onde no receber-dar em que a sua obra, mais do que comporta, se aleita, se alimenta, o artista marca, com a série Hong Kong e com a exposição, em 1997, no Museu de Arte Moderna do México, mais referências ao seu percurso, que exactamente por ter, e só por isso, um lugar de nascimento e de formação, permite ser genuinamente internacional, universal, vulgo, cosmopolita.
A Fundação Gulbenkian, de novo, e Serralves, ambas em 1992, patamarizam a afirmação e a repartida, que é explicitada na Cordoaria Nacional, em 2001, que tivemos a preciosa oportunidade de ver.
A estação do metro de Carnide, o Adamastor da Expo 98, a escultura Lisboa no trajecto Santa Apolónia-Expo, o logótipo do turismo de Portugal, a retrospectiva do Museu Würth, na Alemanha, a exposição itinerante da Caixanova, em Espanha, e a antológica de S. Paulo, são tantos outros marcos que seleccionamos fugindo à exaustão.
José de Guimarães, no preclaro filme de João Mário Grilo – que vamos ver de seguida –, é um operário das artes de génio, um ousado, uma “testemunha lúcida e cúmplice forçado...da crise agónica dos ideais colectivistas, determinando a mutação da modernidade para o chamado pós-modernismo desencantado que nos vem cabendo em destino, desgostosamente limitado a infrutíferas combinatórias de ludismo e niilismo.” (F. Pernes)
O seu cromatismo exacerbado que nunca pretendeu ser agradável, as figurações, quase selvagens, que são, simultaneamente, naifs, seguramente eróticas na mor da vezes, a audácia que prevalece no tratamento das figuras históricas e culturais, o citado hibridismo formal, os símbolos e marcas, a espantar na sua simples erudição, um novo expressionismo, sintético e concentrado, e tantas outras referências e trejeitos, identificam, à primeira, a obra do artista, à segunda, a sua especificidade, a sua valia, à terceira.
José de Guimarães, obrigado por ter aceitado o convite da Orfeu.

Joaquim Pinto da Silva
Bruxelas, 2 de Outubro de 2007

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