Ser penedo é ser por fora o que se é por dentro (Teixeira de Pascoaes)
... é como ser transparente.

3 de outubro de 2008

Inês, naquele engano da alma, ledo e cego

(exposição no Castelo de Alter do Chão, inaugurada pelo Presidente da República, Julho de 2008)


Sabemos todos que a própria História afinal não passa de uma lenda, mais fundamentada por certo, mas não isenta de fantasia e manipulada por interesses pouco históricos e coevos da sua escrita. Das lendas se faz História e da História se fazem mitos, e daí se quem conta um conto lhe acrescenta um ponto, Maria Leal da Costa resolveu colocar o seu neste drama de paixão e apaixonante, que entusiasmou o Ocidente à época (meados do século XIV) e que motivou grandes escritores e artistas a abordarem-no em escritos, desenhos, pinturas, esculturas, partituras, etc.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito
[1]

Com a sua firme rejeição do ordinário, do trivial, e também do espavento, da luxúria, como tive oportunidade de afirmar em anteriores textos, Maria persiste numa figuração diluída, entendível bastante, plena de simbólica e reprodutora de leituras. Este seu lado não convencional e marcadamente contemporâneo, pois de transição clara para um futuro ainda não classificado, de afirmação de síntese – essa odiada dos fingidos vanguardismos – entre as esgotadas abstracções puras e os figurativismos, está aqui bem presente neste conjunto de obras.

A rudeza de materiais e das construções apontam à crueldade de um assassinato bárbaro, com força crua... deste causa à molesta morte sua[2], justificado em políticas, isto é, em conjunturas, a que um refinamento sentimental, talvez plangente, se obstina em condenar, porque a eternidade de um amor se justapõe a qualquer proveito momentâneo. Morrei, Amores, que Inês morreu[3], e só a tragicidade do acto eterniza uma paixão sem par, como se este poema de martírio-amor-ardente tivesse sido escrito pela espada fina que trespassou a inditosa.

Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra uma dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?
[4]

E os ferros da escultora coroam e ferem, no peito lhe enterrais os ímpios ferros[5], acentuam uma realeza que só o é, tardiamente, pelo sangue derramado, e um amor que só existe pela contundente dor, em perversa condição, de teu sangue os crueis tingem seus ferros[6]. As coroas são ásperas e agressivas, como o foi uma morte mas também uma póstuma magnificência, com vinganças e despeitos a acompanhar. Ó que coroa lhe aparelha a morte[7]... se amor houve a morte o coroou.

Não possa mais a paixão
Que o que deveis fazer;
Metei nisso bem a mão,
Que é de fraco coração
[8]

Esse coração, fero e silvestre, provido de uma luz sanguínea, quase incandescente, que seduziu Pedro e se finou em clarões espaçados de agonia, era de Inês, a galega, dessa Galiza ainda hoje atraiçoada pelos mesmos, os do vence a razão do Estado, morre a do afecto[9], porque não soube defender-me, dei-me toda [10], e isso expia-se a cada jacto de luz. O grand’amor nunca se força[11], brota inato protegido por Nike (a grega deusa da Vitória), pela sua veracidade estrutural, como as esculturas de Maria Leal da Costa, reflectidas e impulsivas em sábia dosagem. Do ceptro é digna, impera em corações[12]. A escultora arrebata-nos com os mutantes piscares, ergue mais alto, sublima o drama, isto é, a vida, quer dizer... a morte, porque imparáveis irmãs, opostas razões siamesas, declinam em lampejos o verbo que vale a pena, o que sobeja, Amar.
Tervuren, 1 de Julho de 2008
Joaquim Pinto da Silva

[1] Camões [2] Camões [3] Bocage [4] Camões [5] Bocage [6] António Ferreira [7] António Ferreira [8] Garcia de Resende [9] Camões [10] António Ferreira [11] António Ferreira [12] Bocage

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